@João Abel Manta
Um importante texto de Manuel Loff, no Público:
«Desde que Spínola, apoiado por Sá Carneiro e pela direita militar, viu derrotadas pelo MFA e pela esquerda, no verão de 1974, as suas propostas de um presidencialismo de monóculo e de descolonização sem descolonizar, que a direita portuguesa construiu o mito de que a Revolução portuguesa dos anos de 1974-76 impusera, nas palavras do mais teimoso dos seus líderes, Cavaco Silva, à “sociedade civil [a opressão] do poder militar revolucionário”, uma “tutela colectivista imposta pelo golpe comunista e socialista do 11 de Março” (discursos de 19.12 e 19.5.1990). Ninguém esperaria que o mais impopular dos presidentes da democracia fosse um historiador minimamente rigoroso, mas Cavaco é campeão da manipulação histórica, mais ao estilo de um banal ditador que de um líder de governo democraticamente eleito. (...) Não surpreende que o mesmo homem que nada percebeu do que aconteceu aos portugueses nos últimos cinco anos, nada tenha percebido da democratização portuguesa.
Desde as eleições de 1975, ganhas pelo PS (38%), com a direita reduzida a 34% (pouco menos do que agora) e uma esquerda que se revia na Revolução com os mesmos 21% de votos que obteve nas eleições de 2015, que a direita e os socialistas reivindicaram a supremacia da legitimidade eleitoral sobre a legitimidade revolucionária. Lembremo-nos que a democracia portuguesa se construiu desde o dia 25 de Abril de 1974 sobre a base de uma dupla legitimidade, tanto a eleitoral quanto a revolucionária. (...)
Esta velha discussão sobre o modelo português de democratização decorre precisamente porque ele se construiu por via revolucionária, operando uma ruptura com o passado - ruptura política, porque derrubou a mais longa ditadura da Europa Ocidental; ruptura social, porque removeu as elites económicas e sociais dos 150 anos anteriores; ruptura económica, porque mudou a estrutura da propriedade; e ruptura cultural, porque triunfaram os valores de emancipação da dominação colonial e a de género contra as mulheres e as minorias de orientação sexual, da exploração do trabalho e dos jovens forçados à guerra e à emigração. O caso português não é excepção alguma: por ruptura nasceu a grande maioria dos regimes políticos europeus do séc. XX; excepção foram as transições à espanhola. E rupturas assim não agradam nada aos herdeiros das classes dominantes que, associadas ao antigo poder, acompanham a sua queda.
As direitas, que resistiram 100 anos – 150 em Portugal – ao sufrágio universal, invocam a legitimidade eleitoral apenas quando percebem que os votos podem diluir grandes mudanças sociais. É então, e só então, que elas clamam por urnas contra greves e assembleias de trabalhadores, tropa contra manifestantes. (...)
Por outras palavras, legitimidade eleitoral sim, desde que seja a boa... É por isso que no debate português sobre a origem e o desenvolvimento do nosso regime democrático é sinistro que um presidente da direita questione directamente a legitimidade eleitoral que resulta do voto de há um mês como elemento central da configuração da vontade democrática. (...)
Desde que Cavaco subiu ao poder, logo a seguir ao tratado de adesão (1985), os governos, de uma forma ou de outra, actuaram como se os tratados europeus tivessem precedência sobre as normas constitucionais. Isto é, o arco da governação adoptou, de facto, outra Constituição. Precisamente, lembremo-lo, como as ditaduras que nem se deram ao trabalho de reformar a constituição em vigor, limitando-se a ignorá-la porque incompatível com a Nova Ordem imposta. Os liberais têm destas coisas...
Nesta retórica mal amanhada, aqueles que há 40 anos se queixavam da “opressão revolucionária” contra a legitimidade eleitoral querem agora impor contra ela a “opressão” do compromisso europeu interpretado a seu bel-prazer.»
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