«Um dos costumes mais apreciados pelos políticos de tempos remotos era poderem reunir-se em segredo para tratar de assuntos que tinham a ver com todos os cidadãos.
Porque partiam do pressuposto que os cidadãos não têm de se entender sobre o que eles negoceiam, já que são eles que sabem o que convém aos cidadãos. Nesse aspecto os partidos que estão no Parlamento comungam da mesma lógica de associação secreta: o segredo é a alma do negócio. Não espanta por isso que o acordo entre PS, BE e PCP esteja a ser cozinhado numa sala fechada a sete chaves.
Quando sair fumo branco, se perceberá quais os condimentos utilizados para que o pato no forno seja agradavelmente consumido por mercados, Comissão Europeia, pensionistas, trabalhadores e empresários. Ao mesmo tempo. O nó górdio da esquerda, sabe-se, é um problema mais insolúvel do que o da direita. PSD e CDS, alinhados depois de terem aniquilado o velho centro político da classe média, têm interesses macro e deixam as divergências micro para depois. A esquerda é especialista em aumentar as divergências de pormenor, conseguindo que estas impeçam um acordo macro.
Normalmente a esquerda fica prisioneira da sua fragmentação existencial, preferindo entrar em autofagia a caminhar junta para uma qualquer barricada. Essa é, aliás, a grande fragilidade de qualquer acordo PS/BE/PCP. Se a entrevista de Catarina Martins ao DN mostra uma descida do mundo da "Guerra de Tronos" a alguma realidade e pragmatismo, resta saber se isso será suficiente para que as diferenças históricas não se tornem uma fronteira inultrapassável. É por isso que PSD e CDS estão mais confortáveis do que parecem: sabem que se esta aliança de esquerda soçobrar, a hegemonia cultural que conseguiram nos últimos quatro anos ressurgirá com mais força. É por isso que, mais do que um Governo, joga-se nos próximos tempos o futuro da teia política, económica, social e cultural que os verdadeiros ideólogos do PSD e do CDS teceram nestes anos. Um nó quase já impossível de desatar.»
Fernando Sobral
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