27.2.16

Há uma certa tristeza nisto tudo



Excertos do texto de José Pacheco Pereira no Público de hoje:

«Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. O país conhece um ritmo depressivo quotidiano. De vez em quando, há um crime hediondo. Uma mãe mata as filhas. De vez em quando, é preso alguém importante e respeitável. Um procurador. De vez em quando, há um pequeno sobressalto porque alguém quer pôr árvores a servir de separadores de uma estrada. De vez em quando, há um pequeno sobressalto porque alguém quer deitar abaixo umas árvores. De vez em quando, há uma jovem actriz de telenovelas que tem cancro e, como não sabe viver fora dos holofotes, leva o seu cancro a tudo quanto é capa. As melhoras. De vez em quando, há mais um caso de violência doméstica. De vez em quando, um pescador ou um operário ou um desempregado que arredonda o seu orçamento apanhando bivalves no Tejo morre afogado. De vez em quando.

Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. Quase sempre, a todas as horas, há futebol. Discute-se antes, durante, depois. Os canais noticiosos, que deviam acrescentar-se aos canais desportivos, são tanto ou mais desportivos e cada vez menos noticiosos. Se um começa um painel sobre futebol, nenhum outro se atreve a fazer qualquer outra coisa que não seja outro painel sobre futebol. Nada mobiliza mais os portugueses, em particular como espectadores, telespectadores, ouvintes, conversantes, tertulianos e habitantes de mesas de café, do que a bola.

Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. Na política, o país está num impasse, mas parece que não. Como acontece por toda a Europa, a impotência do poder político democrático face ao poder económico castrou governos eleitos e submeteu-os a entidades obscuras como os “mercados”, onde o grosso do dinheiro que circula não tem pai nem mãe, a não ser numa caixa de correios das ilhas Caimão. O sistema político democrático, a representação partidária tradicional, está numa crise que parece não ter saída. Os partidos do “arco da governação”, ou seja, os que têm o alvará de Bruxelas, do senhor Schauble, da Moody’s e da Fitch, ainda ganham as eleições num ou noutro país, mas ninguém os quer ver a governar outra vez, pelos estragos que fizeram à vida dos homens comuns para salvar a banca, não tendo no fim salvado coisa nenhuma. (…)

Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. Como não saímos da cepa torta, habituamo-nos depressa a considerar a cepa torta como a “realidade”. Já não nos governamos, para gáudio de alguns, indiferença de muitos e preocupação de um punhado de lunáticos, que ainda pensam que votam em Portugal, para que governantes portugueses eleitos por esse voto governem Portugal. Ainda são fiéis ao principio da revolução americana de que “no taxation without representation”, e por isso é o Parlamento português que deveria fazer o Orçamento e não uma mistura de governantes estrangeiros acolitados por uma burocracia escolhida pela fidelidade ao cânone alemão. Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. Num certo sentido, eu percebo por que razão o futebol é tão importante. É como cantar blues, ponderada a diferença de qualidade. Seria melhor arranjar um Django, mas não aparecem a pedido.» 
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