2.2.16

Nuno Teotónio Pereira e Edmundo Pedro numa conversa fascinante (3)



Publico hoje a terceira e última parte de um texto baseado numa conversa que tive com Edmundo Pedro (EP) e com Nuno Teotónio Pereira (NTP). (Parte 1 e Parte 2)

Uma esperança chamada Cuba

Quando Portugal vivia ainda no rescaldo, já desiludido, das eleições presidenciais a que Delgado concorreu em 1958, a vitória de Fidel de Castro em Cuba, em Janeiro de 1959, funcionou como uma verdadeira mola para grande parte dos antifascistas portugueses. Foi uma «grande esperança de uma revolução democrática, de rosto humano, um solução diferente da soviética, que teve um impacto enorme» para EP, uma realidade seguida com «um muito grande entusiasmo» por NTP.

Experiência especialmente importante para este último foi uma estadia em Havana, em 1962, algum tempo depois da crise dos mísseis na Baía dos Porcos. NTP participou então no primeiro congresso internacional que teve lugar em Cuba depois da revolução (e tal aconteceu porque o local tinha sido escolhido antes de 1959), integrado num grupo de arquitectos de muitas nacionalidades – com direito a um discurso de Che Guevara e a um outro de Fidel, «que nunca mais acabava» (mas, segundo um participante cubano, «o mais curto que até então tinha feito»). Depois de grande insistência, NTP conseguiu convencer os responsáveis da rádio cubana a cederem-lhe a gravação do discurso de Fidel, garantindo-lhes que era «para fazer propaganda em Portugal» – o que era rigorosamente verdade. De regresso a Lisboa, promoveu várias audições em casa, religiosamente seguidas por grupos de amigos. Recorda-se bem de uma delas, em pleno rescaldo dos acontecimentos estudantis de 1962, quando Víctor Wengorovius levou consigo, e lhe apresentou, Jorge Sampaio. Conseguiu também realizar uma sessão no Sindicato dos Arquitectos, mas, alguns anos mais tarde, e apesar de não estar identificada, a bobina despertou a curiosidade de agentes da PIDE durante uma rusga e foi levada juntamente com livros e com papéis.

A esperança depositada na revolução cubana foi, para ambos, tão grande como a desilusão com a sua concretização. Mas essa desilusão só viria mais tarde, muito mais tarde – nem conseguem situá-la exactamente no tempo. 


Partidos – adesões e desilusões

Pouco dizem sobre a década de 60 – avançam para o 25 de Abril, ou quase. E, no entanto, foram anos muito importantes nos seus percursos: de intensa actividade nos meios dos católicos progressistas para NTP, cheios de peripécias para EP, começando pela preparação – e falhanço – do golpe de Beja, no dia 1 de Janeiro de 1962 (tema que está precisamente a abordar neste momento, na preparação do segundo volume das suas Memórias).

EP conta como aderiu ao PS. Nos primeiros dias de Setembro de 1973, cruzou-se por acaso com Mário Soares no aeroporto de Madrid, numa escala que este fazia, vindo da América do Sul e de regresso a Paris, onde estava então exilado. EP recorda a preocupação de Mário Soares relativamente a uma conversa tida dias antes com Salvador Allende e à situação que encontrara no Chile (que viria a acabar muito mal, como é sabido, alguns dias depois, a 11 de Setembro). Foi nesse encontro no aeroporto de Madrid que EP foi convidado a aderir ao PS, o que aceitou imediatamente.

Diferente foi o percurso de NTP, hoje também membro do PS: só aderiu em 2002, depois da derrota de Ferro Rodrigues nas eleições legislativas. Antes, pertenceu ao MES, desde a sua fundação, em 1974, até à extinção. Esteve depois ligado à fundação do BE, foi candidato por Portalegre nas primeiras eleições a que aquela organização concorreu, mas viria a afastar-se.

Tanto EP como NTP comentam largamente o papel do MES – o que teve e, sobretudo, o que, segundo eles, poderia ter tido como «braço político» de uma parte do MFA» (expressão de NTP), sua «consciência política», (diz EP). NTP considera mesmo que a cisão ocorrida no MES, em Dezembro de 1974, em razão da qual «saíram os melhores quadros», «foi uma verdadeira tragédia». Sem ela, talvez não tivesse ocorrido «a deriva esquerdista do MFA, que foi fatal».

Hoje são ambos militantes de base do PS, mas muito, muito críticos em relação à actuação do partido a que pertencem. Nas últimas eleições presidenciais, não estiveram juntos: EP apoiou Manuel Alegre, NTP esteve ao lado de Mário Soares. 


O país, a Europa e o mundo

Pergunto-lhes como vêem a actualidade. Transcrevo uma parte do que foram dizendo.
EP – «A coesão social, de que tanto se fala, implica solidariedade entre aqueles que têm muito e os que não têm nada. Em muitos países mais avançados, os muito ricos têm a preocupação de uma certa justiça. Não em Portugal: o nosso capitalismo é mais selvagem do que a maior parte dos outros.»
NTP – «Completamente de acordo.»
Quanto ao futuro, EP afirma que é optimista por natureza, mas que sente angústia com o que se passa no mundo:
EP – «Esta globalização selvagem não anuncia nada de bom. É preciso criar, a nível europeu, um grande movimento de contestação para interpretar esta mudança. Não para acabar com os capitalistas, porque está provado que não é fácil. O que é necessário é criar uma situação de partilha, de interesse comum no desenvolvimento entre empresários e trabalhadores».
NTP – «O capitalismo precisa de ser regulado, a crise actual é uma demonstração da falência do sistema.»
EP – «As rupturas revolucionárias só trouxeram desgraças: a russa acabou, a cubana está num impasse e a chinesa também.»
NTP – «A chinesa traiu os seus próprios ideais e conservou só sistema policial.»
«Uma via reformista ousada», insiste EP. «Completamente de acordo», conclui NTP.

A conversa continuou ainda, com outras memórias e com outras histórias. Já quase a terminar, perguntei a NTP se ainda se considera católico.
«Não, não, sou agnóstico.»
«É uma evolução curiosa, é uma evolução curiosa!», conclui EP.
Para quem me acompanhou nesta conversa, desde o início, não haverá expressão mais adequada: «evolução curiosa». Estes dois homens, nascidos e criados na mesma cidade mas em extremos opostos, social e culturalmente, no plano político e no plano religioso, foram convergindo. São hoje ainda idealistas mas cada vez mais pragmáticos, talvez menos radicais do que muitos esperariam e estão sintonizados em tudo – ou em quase tudo. 
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