José Pacheco Pereira no Público de hoje:
«Voltando à intervenção do Presidente da República há duas semanas e acrescentando-lhe várias outras declarações entretanto feitas sobre a mesma matéria — Marcelo produz declarações a um ritmo, digamos, de forma eufemística, acelerado —, vamos agora ver o “lado de dentro” dessas declarações, ou seja, o que elas revelam sobre Portugal e a União. Este é, aliás, o aspecto pior dessas declarações, visto que Marcelo acaba por ser o porta-voz do atentismo voluntarista que explica por que razão a nossa consciência crítica e a nossa vontade cívica soçobram face àquilo que hoje a Europa é contra os interesses nacionais, insisto, contra os interesses nacionais.
Eu sou mais europeísta do que eles, porque estou consciente do caminho para o desastre que se está a seguir e mais próximo da Europa dos fundadores, que de há muito renegaram. E, sim, o facto de não haver sanções não justifica nenhum dos elogios que estão a ser feitos à União, porque eles assentam numa análise asséptica das razões por que não houve sanções.
O facto de não haver sanções foi o resultado de um combate político que se fez exactamente contra a Europa dos europeístas, em vez da atitude de submissão que era e é a norma. Se há mérito, não é da Europa das “regras”, mas do Governo português, que a contestou, mesmo que não o diga. Este combate travado pela primeira vez por um governo do lado débil do Sul é em si uma novidade, mas está longe de significar uma mudança qualitativa da União.
Se este sucesso tem continuidade, é o que se vai ver, espero que sim, mas duvido que tenha, em particular pela reafirmação do garrote do Tratado Orçamental, um instrumento contra o desenvolvimento económico dos países da Europa que mais precisam de alguma folga prudente, consistente mas continuada. Aliás, é com ironia que vejo o FMI juntar-se aos perigosos esquerdistas que falavam da reestruturação da dívida e do desastre que foi o programa da troika e, por maioria de razão, o modo como foi aplicado em Portugal. O recente documento do FMI é um libelo contra as políticas do Tratado Orçamental impostas pelo Eurogrupo e apoiadas com entusiasmo pelo Governo PSD-CDS, que queria, de forma pouco disfarçada, que Portugal sofresse sanções... pela política de 2016. (…)
Voltando ao discurso presidencial, um dos seus pontos-chave é o ataque à proposta de referendo que foi feita pelo BE, caso houvesse sanções. O BE andou para trás e para a frente com a proposta, deixou-se enredar nas críticas do Presidente e do PCP sobre a não possibilidade de haver referendos a tratados internacionais. Claro que a questão não precisa de ser constitucional ou a pergunta ser sobre um tratado, até porque há muitas maneiras de perguntar ao povo português sobre a Europa sem violar a Constituição. Marcelo deve conhecer pelo menos vinte.
O problema é outro: é a demonização do referendo cuja proposta, seja sob que forma for, é considerado quase uma proposta criminosa e antinacional, própria de fascistas, nacionalistas, comunistas e diversos extremistas. É irónico que Marcelo seja hoje um porta-voz dessa demonização, ele que fez parte do partido com mais tradição referendária e que propôs ele próprio pelo menos um referendo. (…)
Aliás, por que razão é que pensam que a reivindicação referendária tem crescido, a não ser pela consciência crescente de que o bloco PPE-PSE que domina a Europa retira o pluralismo da discussão política da União para o entregar a maiorias pouco sadias, e de costas cada vez mais voltadas para a opinião popular? É por saberem que partidos como o PS e o PSD, assim como os seus congéneres europeus, não entram em conta com o crescente sentimento hostil à União Europeia, e que nenhuma discussão parlamentar exprime os seus pontos de vista a não ser rotulando-os de nacionalistas, extremistas, quiçá fascistas, que a pressão referendária aumenta.
À medida que a democracia nacional é sugada pela burocracia de Bruxelas e pelos países mais poderosos, que os parlamentos enfraquecidos e subordinados se transformam em entidades vazias, apenas resta às pessoas a exigência referendária. Se a democracia parlamentar funcionasse como devia, representando as opiniões reais e não directórios partidários, e o Parlamento tivesse os poderes de dizer que não em muitas matérias em que foi desapossado desse poder sub-repticiamente, a pressão referendária era menor.
Foi o que aconteceu no Reino Unido, é o que acontece por regra quando se leva ao voto popular medidas propostas pela União, que ou chumbam, ou passam ao milímetro quando não tem de se repetir referendos até dar o resultado “certo”. A deslegitimação democrática do processo europeu é a fonte da pressão referendária.
E não, senhor Presidente, Portugal não “se sente bem na União Europeia”.»
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