«É por demais evidente a diferença entre Guterres na ONU e Durão na UE. E é muito curiosa esta (quase) unanimidade doméstica em torno da eleição de Guterres para a secretaria-geral das Nações Unidas. Curiosa porque este é o país onde, a despropósito, se gosta das tiradas sobre a “ineficácia” e a “hipocrisia” da ONU (retórica que já vem dos tempos de Franco Nogueira no Palácio das Necessidades), quer porque o seu sistema de tomada de decisão impede o Ocidente de fazer com a ONU o que faz com a NATO, quer porque a grande maioria dos Estados-membros representam populações que até há 40-70 anos não eram mais do que súbditos coloniais, pelo que, com todo o paternalismo e preconceito rançoso que por aí predomina, é uma maçada ter de discutir com eles...
No âmago da nossa política externa predomina quem sempre menosprezou (ou simplesmente detesta) a ONU: primeiro porque ela apoiou empenhadamente o fim da hegemonia colonial da Europa e do Ocidente sobre o planeta; depois porque ela, e em particular as suas agências, assumiu uma leitura crescentemente social do mundo, de que, em certa medida, o Guterres alto-comissário para os Refugiados foi um porta-voz que nunca agradou a esta gente; finalmente, porque a ONU está fundada na ilegitimidade essencial dos comportamentos expansionistas e imperiais dos gendarmes do mundo, enquanto quem se arrogou o exclusivo de pensar e gerir a posição de Portugal no mundo entende que o nosso futuro passa por se colar aos grandes “do nosso lado”, sejam eles os norte-americanos desde 1945, possam eles ser hoje os alemães na UE.
A grande maioria da história da política externa portuguesa desde que entrámos na NATO (1949) e desde que pedimos para entrar na CEE (1977) foi gerida por governos que se empenhavam em colocar-se em bicos de pés para ver o que caía do prato dos mais poderosos do Ocidente. (...)
Durante a ditadura, o Governo português afrontou a ONU e tudo quanto de sistema internacional de gestão da paz e prevenção da guerra ela significava. Teimosa e abertamente partidário da preservação da hegemonia ocidental e da “supremacia branca” sobre o sistema internacional, Salazar, uma vez conseguido o ingresso na ONU (1955), nunca assinou a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e não só se recusou a aplicar a Carta das Nações Unidas, negando possuir colónias e, portanto, a prestar informação sobre elas, como sabotou o bloqueio internacional ao regime de minoria branca imposto na Rodésia em 1965. Mais grave ainda, sabotou uma das primeiras, e maiores, operações de paz da ONU, no Congo (1960-64), apoiando com armas e logística a secessão armada do Katanga alimentada por antigos colonos belgas. O próprio secretário-geral Dag Hammarskjöld foi assassinado quando o seu avião foi abatido na Zâmbia (ainda sob domínio colonial britânico), segundo os últimos dados da investigação (2011 e 2014) por mercenários belgas com o conhecimento de norte-americanos e britânicos. Marcelo, o Caetano, abandonou a UNESCO em 1971. Que a África do Sul tenha permanecido quase o único aliado de Portugal contra todas as sanções aprovadas pela ONU nos anos da Guerra Colonial diz bem do canto do sistema internacional para onde o Estado português se atirara. E ajuda a perceber porque é que os nossos governos se opuseram às sanções internacionais contra o regime do apartheid sul-africano, quer nos tempos de Salazar, quer nos de Cavaco Silva (e que vergonha este, com semelhante passado, se tenha atrevido a fazer o elogio póstumo de Mandela!).
O desprezo vem de há muitos anos e ainda não cessou.»
Manuel Loff
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