20.5.17

Crescemos 20 centímetros com a vitória na Eurovisão, mas encolhemos metro e meio nos últimos anos



José Pacheco Pereira no Público de hoje:

«Isto de ser desmancha-prazeres não é propriamente muito agradável, mas lá terá de ser. A Pátria está mais uma vez a atravessar um espasmo nacionalista por causa da vitória dos irmãos Sobral na Eurovisão. Isto é por surtos, agora vai haver 15 dias de celebrações, cheias de grandes frases, cheias de peito feito, por parte de quase toda a gente que nem sabia que Salvador Sobral existia. (…)

Ninguém o disse melhor que o senhor Presidente da República, que afirmou que “a vitória na Eurovisão deu 'mais 20 centímetros' aos portugueses”. Sim, excelente, andamos todos com mais 20 centímetros, mas onde é que está o metro e meio que perdemos como nação há 20 anos para cá, com a perda de poderes do Parlamento português, com a assinatura de tratados como o Orçamental, com a subjugação a um modelo de crescimento medíocre em nome das “regras europeias”, com acordos como o Acordo Ortográfico, que fez proliferar as normas da ortografia do português, em vez de as unificar, ficando nós com a mais pobre, com os cortes no ensino da língua e da projecção da cultura, com a ênfase na diplomacia económica e o definhar das instituições como o Instituto Camões?

O mais grave de tudo é que os 20 centímetros que o Salvador Sobral trouxe são em grande parte mérito dele, e o metro e meio que perdemos é demérito nosso. Foi o resultado de uma política de dolo que a União Europeia usou, com destaque para ao Tratado de Lisboa, que tirou às escondidas e sem debate público poderes que ninguém conscientemente deu à União, em detrimento da soberania nacional, foi o resultado dos desastres de Sócrates que nos levaram ao resgate e da política para forçar eleições em 2011 do PSD, foi o resultado da nossa apatia cívica face ao que é verdadeiramente importante, em contraste com as excitações futebolísticas. Foi o resultado de um sistema político no qual a dimensão cultural, histórica e expressiva da língua e da sua ortografia foi deitada ao lixo, por uma espécie de engenharia diplomática que se revelou um desastre, ficando todos pior do que o que estavam. (…)

Eu não tenho muitas ilusões sobre o que ocorreu nos anos imediatamente a seguir ao 25 de Abril. Sei o papel que tinham estudantes que se descobriam proletários e como muitas organizações com nomes pomposos e revolucionários eram uma inexistência e, acima de tudo, nem eram “de trabalhadores”, nem “populares”, muito menos “proletárias”. Sei também do autoritarismo que percorria muitas ideias políticas, do enorme machismo e sexismo existente, das inúmeras ficções, teatros e enganos desses anos do final da década de 70. Mas estou neste momento a organizar mais de mil fotografias desses anos tiradas por militância e não pela arte da imagem, e que só em parte tinham intenção documental. E essas fotografias revelam um momento excepcional da vida portuguesa, menos político do que pensávamos na altura, mas mais social, altruísta e, à falta de melhor palavra, esperançoso. De facto, o passado é um país estrangeiro. (…)

Estas faces e estes corpos teriam certamente as mais genuínas das emoções pela vitória de Salvador Sobral na Eurovisão. Mas não se ficavam por aqui, tinham algumas esperanças que nós não ousamos ter. E temo que os espasmos nacionalistas com as canções e com o futebol tenham ocupado algumas dessas esperanças, transformando-as em egoísmos.» 
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