Sandra Monteiro , Le Monde Diplomatique (ed.portuguesa), Maio 2017:
«Entre os consensos que nem sequer precisam de dizer o seu nome estão alguns dos que mais devem captar a nossa atenção. De outro modo naturalizam-se, instalam-se nas mentes e nas instituições como algo a que todos demos o nosso acordo. O discurso do presidente Marcelo Rebelo de Sousa na Sessão Solene Comemorativa do 25 de Abril, que teve lugar na Assembleia da República, é disso um bom exemplo. Numa hábil construção, feita para que todos nela encontrem algo que lhes agrade, o presidente da República teria trocado, ouviu-se dizer, os tradicionais apelos aos consensos e as referências à União Europeia por razões para nos «orgulharmos» de Portugal. Num mundo atravessado por perigos que ameaçam as democracias, o país seria um exemplo de como três temporalidades se interligam para garantir paz, segurança e estabilidade: o passado, de uma história aberta ao mundo e de vocação universal; o presente, feito de diversidade política e de portugueses heróicos; e o futuro, projectado por um desígnio nacional que não seria presa fácil de ilusões.
O momento não podia ser mais propício a que um discurso desta natureza parecesse apropriado e, até, elogioso: os portugueses foram apresentados como heróis do passado, do presente e do futuro; as forças políticas e as instituições democráticas como suficientemente flexíveis, diversas e estáveis para se traduzirem uma democracia mais consolidada e menos sujeita a perigos do que as suas congéneres europeias. «Por isso temos resistido à nova vaga dita populista que percorre esse mundo fora», afirmou. Os monstros vivem lá fora, aqui podemos dormir descansados. Podemos mesmo?
O presidente agita a ameaça internacional dos «populismos anti-institucionais», sem dúvida reais nas direitas anti-democráticas e xenófobas, para construir uma narrativa que defende que o «bom povo» português é um herói porque se sacrifica, e que essa postura – e não a que vai atrás de «tropismos anti-sistémicos» –, é a que dá bons resultados para «as finanças, a economia e a sociedade». De uma penada, o presidente da República procura criar três falsos consensos. Vejamos quais.
(Continuar a ler AQUI o texto na íntegra, do qual retiro o último parágrafo)
Marcelo Rebelo de Sousa não precisa de fazer apelos a consensos, basta-lhe personificá-los e repeti-los até à exaustão, quase sempre sem ser criticado. Os «populismos» que pretende evitar parecem ser os que, no actual contexto, são associados às extremas-direitas. Contra este pólo do debate (re)constrói-se um centro político que é apresentado como «consensual», «sistémico». Em conjunto, estes dois pólos, hegemonizados pelo neoliberalismo, expulsam das escolhas consideradas legítimas o «anti-sistémico» que se opõe, no quadro nacional e internacional, ao projecto neoliberal. Por isso o presidente o qualifica como «incerto», «aventura» e «caos», alertando para os perigos de ser visto como «paraíso», «canto de sereia» e «amanhã ridente». Serão estas as novas roupagens do acantonamento sacrificial dos povos ao «não há alternativa» que ainda há pouco era declinado em termos de «indisciplina», «preguiça», «querer e gastar acima das possibilidades»? Depois do moralismo que consistiu em culpar supostas «acções» passadas, será agora a vez do paternalismo, traduzido na «desautorização prévia» de temidas acções futuras? Se sim, o desígnio de Marcelo é simples: construir um novo centro político em torno de um consenso sobre o sistema institucional da União Europeia que possa vir a ser activado, quando necessário, por um presidente que todos os dias trabalha para conquistar a maior popularidade possível.»
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