Pelo mundo inteiro, e compreensivelmente, aponta-se o dedo a Aung San Suu Kyi pelo seu silêncio em relação aos acontecimentos de que está a ser vítima a minoria rohingya na Birmânia (a própria falará sobre o tema na terça-feira). A realidade não é simples, nem a preto e branco, e começam a ser divulgadas declarações que o sublinham.
«O silêncio a que Desmond Tutu se refere na carta aberta [que dirigiu a Aung San Suu Kyi] tem um nome: rohingya. Um nome que nem a líder da Birmânia nem o discurso oficial de todo o país autoriza que se diga em voz alta: rohingya, a minoria étnica que vive na zona Norte do actual estado birmanês de Rakhine, na fronteira com o Bangladesh, e que é tratada pelas autoridades como um grupo de cidadãos de 4.ª categoria – apesar de viverem há séculos naquela zona, os rohingya são considerados imigrantes do Bangladesh, não fazem parte da gigantesca lista de 155 minorias étnicas reconhecidas oficialmente na Birmânia e nem sequer são tratados pelo nome que o resto do mundo se habituou a ouvir nos últimos meses.
A maioria é muçulmana, num país onde os budistas dominam a paisagem, mas o muro de ódio que se ergueu entre os rohingya e o resto da Birmânia é muito mais nacionalista do que religioso – há muito que a maioria do país preferia que os quase 800 mil rohingya desaparecessem do mapa, se possível para o Bangladesh e de preferência para sempre.
A situação dos rohingya é tão dramática que é comum ouvir responsáveis das Nações Unidas e de organizações de defesa dos direitos humanos a referirem-se a eles como a minoria mais perseguida do mundo. Na Birmânia, são imigrantes do Bangladesh que devia voltar para terra deles; no Bangladesh, onde já estão mais de 300 mil refugiados, o plano do Governo passa por enviá-los para uma pequena ilha no Golfo de Bengala, a 60 quilómetros da costa, que fica debaixo de água entre Junho e Setembro por causa das monções e não tem uma única estrada.
A provação dos rohingya não é de agora, e é por isso que muitos admiradores da coragem e da integridade de Aung San Suu Kyi esperavam que a Nobel da Paz lhes desse a dignidade que reclamam assim que chegasse ao poder. Mas, um ano e meio depois de a antiga activista pró-democracia ter começado a governar o país, a situação dos rohingya só tem piorado – e a mistura de silêncios e de avales indirectos com que a conselheira de Estado tem comentado as operações do Exército birmanês no estado de Rakhine já fez com que muitos dos seus antigos admiradores tenham começado a pedir que lhe tirem o Nobel da Paz. (…)
O pensamento dos seus novos detractores é simples e linear: como a antiga activista foi elevada na Birmânia e no Ocidente à categoria de combatente pela democracia e pelos direitos humanos – o que lhe valeu os prémio Sakharov e Nobel da Paz, entre muitas outras distinções –, então o mínimo que se pode esperar dela é que seja uma voz forte contra a ofensiva do Exército birmanês na região onde vive a maioria dos rohingya.
Como isso não aconteceu – e como entretanto a Comissão de Direitos Humanos da ONU e organizações como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch afirmam que está em curso uma limpeza étnica a roçar o genocídio contra os rohingya –, o compromisso de Suu Kyi com os valores que lhe deram notoriedade em todo o mundo está a ser posto em causa. Por causa dessa pressão internacional, a líder birmanesa decidiu não ir à reunião da Assembleia-Geral da ONU, que começa esta segunda-feira – em vez disso, vai ficar na Birmânia a preparar uma comunicação ao país sobre direitos humanos.
Mas o silêncio de Suu Kyi em relação aos rohingya pode ser mais complicado do que parece à primeira vista, diz Gwen Robinson, especialista em política da Birmânia na universidade tailandesa de Chulalongkorn. Num texto publicado no diário Nikkei Asian Review, com o título Mitos e realidades por trás da crise em Rakhine, Robinson diz que a líder birmanesa está entre a espada e a parede, num país onde os militares continuam a exercer o seu próprio poder, e onde a maioria da população vacila entre a total indiferença e o ódio em relação aos rohingya.
“Internamente, com o ressentimento popular contra os rohingya enraizado na história conturbada da Birmânia, até o silêncio de Suu Kyi perante os excessos militares é visto como uma posição favorável à odiada minoria, enquanto internacionalmente esse silêncio tem sido retratado como uma concordância com a campanha dos militares”, diz a especialista. Segundo Gwen Robinson, Suu Kyi não tem qualquer tipo de ascendente sobre a forte e enraizada máquina militar da Birmânia e “tem medo de perturbar o equilíbrio de poder” e de “dar uma imagem de fraqueza dentro do país” – por outras palavras, uma posição forte contra os ataques do Exército birmanês no estado de Rakhine poderia precipitar um novo golpe de Estado militar, e o regresso à estaca zero para um país que começa a dar os primeiros passos em direcção à democracia.
É este também o ponto de vista defendido por outro Nobel da Paz, o timorense José Ramos-Horta, num texto assinado em conjunto com a australiana Janelle Saffin, sua antiga conselheira. “Ninguém está acima de culpas pelas violações dos direitos humanos que estão a ser cometidos no estado birmanês de Rakhine. Mas, ao apontar apenas o dedo à conselheira de Estado, Aung San Suu Kyi, a comunidade internacional está a permitir que os generais da Birmânia – que levaram o país à desgraça ao longo de décadas – fiquem em segundo plano a assistirem ao escalar da crise.”
Num artigo em que sublinham a fragilidade do processo democrático na Birmânia – com uma Constituição de 2008 que mantém os civis afastados das decisões ligadas à Defesa –, Ramos-Horta e Saffin condenam as atrocidades, acusam os líderes militares e pedem tempo para a Suu Kyi: “Dito de forma simples, criar uma cultura de respeito pelos direitos humanos e pelo primado da lei – há muito ignorado e violado na Birmânia – não vai acontecer de um dia para o outro.”»
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