19.9.17

Os geringonçólogos



«No tempo da União Soviética, que deus tenha, havia uma trupe de analistas encartados que se reconheciam como “sovietólogos”. Competia-lhes a tarefa árdua de olharem à lupa para as fotos, que a televisão era pouca, e de colecionarem boatos para poderem chegar à conclusão de que o secretário-geral estava com azia, se fosse o caso, ou outra infâmia qualquer. Da influência de casos desse tipo nos misteriosos destinos do planeta reza a história.

Suponho que, perante o inesperado, é assim que reagem as sociedades perfeitas e os seus mestres de cerimónias. Querem saber e, se não sabem, querem adivinhar. Se for coisa de Ficheiros Secretos, se for eco da Cidade Proibida de Pequim, se for boato da mansão de Futungo de Belas em Luanda, até se for de tumulto no parlamento de Brasília, é esta classe de analistas que é chamada ao palácio para traduzir os sinais, os hieróglifos e as entoações. Sinal dos tempos, agora dedicam-se a Trump e a outras surpresas, e não lhes faltará assunto.

Mas se o desconhecido se instala entre nós, como um vírus, e não à distância de um telejornal, então o cordão sanitário é um desespero: os que mandam têm que compreender ou pelo menos classificar, os de baixo devem ser alertados e prevenidos. É o caso da ameaça da “geringonça”, que não é só uma mazela, é mesmo uma ameaça à moral e aos bons costumes.

Calhou-nos portanto a sorte de ter que viver com esta casta especial, especializadíssima, que é a dos peritos em decifrar o tom de voz, a catadura, a posição da mão, o andar, a cor da roupa, a gravata e até, em desespero de causa, a palavra desta gente que arrombou a porta do palácio. São os geringonçólogos.

Habituados ao debate político, os geringonçólogos no entanto abominam a troca de razões; desgostosos dos silêncios oficiais, no entanto aborrecem a discussão pública sobre dossiers e questões; irritados com negociações de gabinete, no entanto indignam-se com a transparência, a que preferem a fuga de informação.

Sendo profissão de sucesso, a carreira de “geringonçólogo” atrai variadas espécies: tudólogos, mas também jornalistas-comentadores, incluindo ideólogos e, além deles, os engraçados, que são os meus preferidos, se tiver voto na matéria. Em todo o caso, a sentença é pesada: os partidos da esquerda vêm de um “resultado pífio” (isto é editorial), “não se levam a sério”, atravessa-se-lhes uma “alegria tonta” (isto também é editorial) ou elaboram “fantasias” avulsas (este é de ontem). Como não compreender que não sejam ouvidos, “ou melhor, ouvimos, mas não lhes damos valor”?

Como não compreender que mulheres que dirigem uma destas esquerdas sejam umas “alucinadas” ou até umas “patas”, em todo o caso perigos públicos, “mais daeshistas do que o Daesh”. O mais moderado destes escritores manifesta a sua tristeza pelas “propostas nalguns casos delirantes” desta gentalha.

Miguel Pinheiro, o director do Observador, cujas posições já tinham brilhado em algum canal de televisão e se não me engano na Sábado, tudo pilares do jornalismo mais isento, resolveu escrever que essas geringoncistas “gritam muito, e berram muito, e protestam muito, para que, no meio do ruído, ninguém perceba isso”. Outro director enfuna as velas e intima: “O que pensam Mariana Mortágua, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa da vergonha que vem nas viagens pagas para se obter um contrato do Estado? Não pensam nada porque foram os agora seus (nessa oitava maravilha do mundo que se denomina geringonça) que apanharam o avião, comeram e dormiram de borla e agora, apanhados, põem o futuro à disposição. Mariana, Catarina e Jerónimo não têm vergonha”. Azar dos Távoras, Pedro Mota Soares foi forçado a esclarecer, compungido, como tinha autorizado viagens, já para não detalhar a viagem do primeiro-ministro Cavaco Silva sob hospitalidade da Nestlé – e há pelo menos um partido de que não se encontra nenhum nome em viagens deste jaez.

O meu argumento é que nada disso importa. O fluxo de insinuações e de intimações já não é jornalismo, é a canibalização do espaço público para ajustes de contas, para ensaios de carreiras, para praxes ideológicas e para luta de interesses. Mas há uma ideia, e ela resume todo o sucesso da geringonça e da sua relação de forças com a direita e entre si: os geringoncistas já só têm uma agenda, que o PS tenha maioria absoluta. Tudo se resume agora ao apelo da alma, oh céus, venha pelo menos o poder total de António Costa para que se encoraje a afastar a geringonça, de qualquer modo com Passos e Cristas já se perdeu a esperança, resta Cavaco mas quem lhe liga, mais vale perdidos por cem do que perdidos por mil.»

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