«Sempre que se deparava com alguma dificuldade na sua tentativa para apanhar o pombo que transportava mensagens secretas para os aliados, Dick gritava para o seu cão: "Mutley, faça alguma coisa!" Este era o mundo dos desenhos animados televisivos "Os Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras". E onde, por fim, Mutley, perante os disparates, surgia com o seu riso trocista que ficou para a história. A Ryanair não é a versão do século XXI da Esquadrilha Abutre de Dick, nem Michael O'Leary, um sucessor de Mutley. Esta transportadora aérea que agora se vê no meio de uma imensa trapalhada foi uma das que democratizaram o transporte aéreo. Fez dos aviões verdadeiras carroças voadoras, devido ao preço praticado. Tornou-se barato viajar e isso teve implicações notáveis na indústria turística. E alterou a aviação comercial de forma brutal: quem imaginaria que transportadoras de bandeira dessem hoje uma sandes e um sumo aos passageiros ou não fornecessem refeições, para competirem neste mercado de preço baixo? Tornando-se, elas próprias, transportadoras "low-cost".
A forma, quase de "fait-divers", como em Portugal tem sido encarado o problema operacional da Ryanair não deixa de causar perplexidade. Muito do crescimento turístico de Lisboa e Porto veio à boleia de viagens de avião baratas (e talvez por isso se deram benesses, e se prometiam outras, às operadoras "low-cost" nos actuais e futuros aeroportos internacionais portugueses). O súbito cancelamento de dezenas de voos da Ryanair mostra a fragilidade do turismo português perante estas operadoras. O modelo da Ryanair é o espelho do capitalismo de plataforma que se instalou: com trabalhadores "low-cost", os consumidores também se tornaram "low-cost", todos eles produtores de dados para as plataformas multinacionais. A lógica de empresas como a Ryanair é reduzir o trabalho da empresa e aumentar a acção dos seus clientes (acabando por lhes cobrar tudo o que não é essencial). Só que acabaram por criar uma ficção. Que, se desaparecer, pode criar um pesadelo.»
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