17.12.17

Não há raças, só há cidadãos?



«Reconhecendo a existência de cidadãos portugueses negativamente discriminados em função da visibilidade somática (e.g. a cor da pele, a textura dos cabelos), os peritos do Comité para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) da ONU recomenda(ra)m ao Estado português a necessidade de reconhecer a existência de uma minoria racial e de estabelecer políticas específicas contra aquela ilegítima discriminação.

Porém, argumenta-se que a existência de uma minoria racial acompanhada de políticas públicas específicas para minimizar a discriminação configura uma solução racista para o problema da discriminação racial. Com efeito, se a ciência já provou a inexistência de raças, invocar uma minoria racial faz subsistir na esfera pública e na legislação política uma categoria intrinsecamente discriminatória, a de raça, cujo impacto político devastador é testemunhado por inúmeros factos históricos (e.g. escravatura, trabalho forçado, apartheid e Holocausto).

Neste contexto, se não há raças e se há cidadãos (ou organizações) que defendem a existência de uma minoria racial que carece de protecção pública contra o tratamento discriminatório de que são alvo, então aquela defesa prova mais o racismo de quem a propõe do que a hetero-discriminação. Doravante, os verdadeiros fautores da discriminação racial são todos aqueles que denunciam um tratamento baseado numa realidade que não existe e atribuem a falsos obstáculos exteriores (a hetero-discriminação) a incapacidade interior de prossecução dos seus fins. Nesta perspectiva, as barreiras raciais e racistas no acesso à educação, aos serviços públicos e ao emprego são exclusivamente interiores e, por serem autoignoradas, são erroneamente atribuídas a uma entidade imaginária. Assim, a violência policial pune comportamentos intrinsecamente desviantes e a recusa em participar na sociedade é resultado de uma deliberada e desafiante vontade de auto-exclusão. Em última instância, a reivindicação de uma minoria racial resulta do processo de vitimização do grupo minoritário, incapaz de reconhecer que a discriminação de que reputa ser alvo é uma consequência (natural e social) da sua menoridade.

Conquanto fosse desejável que a denúncia da vitimização fosse acompanhada pela da torcionarização, i.e. do esclarecimento da diferença social e política na perspectiva das qualidades intrínsecas (naturais ou sociais) do grupo de cidadãos discriminados, a ideia de que a constituição de uma minoria racial é uma ideia racista parece-nos precipitada.



O argumento de que a ciência já provou não haver raças e, por isso, não há nenhuma justificação para as mencionar parece minimizar a origem política da discriminação racial. Com efeito, não é por a ciência negar a existência de raças que as crenças racistas e as instituições nelas inspiradas desapareceram. Essas crenças constituíram-se e mantiveram-se sem legitimação científica e transformaram-se em leis públicas. Por exemplo, a prova científica da inexistência de raças não impediu 60.000 polacos de marcharem numa Europa branca. Não evitou, também, a integração da diferença racial nas constituições, como nos casos extremos do apartheid na África do Sul, da segregação racial nos EUA ou do nazismo na Alemanha, e na legislação parlamentar, governamental e judicial noutros países.

Por isso, é conveniente evitar confundir o preconceito racial com as leis públicas (uma coisa é o preconceito racial dos 60.000 polacos, outra completamente diferente é a transformação desse preconceito nas leis políticas da Polónia). É também importante distinguir a refutação científica da existência de raças, doravante entendida como uma ficção absurda, do tratamento político de um grupo particular em função de leis públicas resultante dessa ficção. Até porque essa indistinção é politicamente perigosa. Por um lado, poderíamos inferir que se a ciência provasse existirem raças, então legitimar-se-ia o uso do conceito e justificar-se-ia a discriminação racial. Inversamente, deduziríamos que a condição de igual cidadão pressupõe uma igualdade física. Por outro, poderíamos supor que uma vez que não há raças, não há qualquer justificação para combater o tratamento discriminatório através do uso do conceito.

Todavia, se tivéssemos que supor uma indiferença física para justificar direitos iguais de cidadania, teríamos dificuldade em apresentar argumentos para, por exemplo, justificar a atribuição jurídico-política dos mesmos direitos aos homens e às mulheres. Todavia, e salvaguardadas as diferenças entre a discriminação de género e a de raça, a atribuição igualitária de direitos correspondentes ao ideal da igual cidadania não exige a anulação daquela diferença. Com efeito, mesmo, e sobretudo, percepcionando esteticamente as diferenças naturais, estas são enquadradas pelo legislador pela, por exemplo, ideia ético-política da pessoa livre e igual, vista como um fim-em-si-mesma. Aquele legislador vê as diferenças naturais e a igualdade ético-política, i.e. não precisa de supor nenhuma indiferença natural para atribuir iguais direitos e deveres. Neste contexto político, não faria sentido falar da necessidade de reconhecimento de uma minoria racial em Portugal. Por exemplo, segundo o artigo 13.º da Constituição portuguesa, os afrodescendentes devem ser tratados de acordo com o princípio ético-político do igual cidadão.

Todavia, do ponto de vista social e político (legislativo, executivo e judicial), o carácter ilusório ou fictício da raça não impede a discriminação real de um grupo de cidadãos na base da percepção estética do seu aspecto corporal dissociada da condição de igual cidadão. De facto, se dúvidas houvesse acerca da diferença entre o que deveria ser e o que é, bastaria apreciar a fotografia com os consultores da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR). Não ignoramos que a fotografia foi tirada em Março de 2016 e, por circunstâncias pessoais e institucionais, a composição foi alterada. Todavia, admitindo que a raça é uma fantasia e o Estado português é a organização política que representa todos os cidadãos portugueses, independentemente das diferenças arbitrárias do ponto de vista político (e.g. religiosas, sexuais, étnicas, raciais), não deixa de ser surpreendente a homogeneidade da visibilidade somática daqueles consultores num organismo do Estado cuja missão é combater a discriminação racial. Com efeito, se o combate contra a discriminação racial não tem raça — qualquer cidadão que se coloque na perspectiva da pessoa livre e igual repudia a discriminação racial, como, aliás, todas as outras discriminações (e.g. étnica, de género, de orientação sexual, de classe) —, uma coisa é esse combate nas instituições públicas ser travado por todos os cidadãos, independentemente da sua condição natural, outra completamente diferente é a exclusão nesse combate dos cidadãos que a Comissão diz ter como missão proteger. Por isso, a homogeneidade da visibilidade somática dos consultores da CICDR, organismo com a função de proteger os afrodescendentes da discriminação racial, não desmente a existência de uma minoria racial, i.e., de um grupo de pessoas impedidas de usufruir da condição de igual cidadão em função da apreciação estética da sua visibilidade somática.

Ora, se a evidência científica sobre a inexistência de raças proibisse qualquer menção à raça, essa “proibição” não apenas ocultaria o hiato existente entre a evidência científica da inexistência de raças e os preconceitos raciais institucionalizados, mas também impediria todos os excluídos na base desse critério de identificarem a fonte da sua exclusão. Neste caso, a ideia de que é inaceitável falar de raça(s) transformar-se-ia num meio perverso de intensificar tanto a sua exclusão política, como de sonegar o direito a reivindicar ser tratado como cidadão igual.»

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