14.12.17

Nuno Brederode Santos: seriam 73




O Nuno nasceu em 14.12.1944 e deixou-nos este ano. Os amigos não esquecem, ainda dói. Para o manter connosco, divulgo mais uma das suas magníficas crónicas.

Um dia para gente afável

«Escrevo num hoje que será o ontem dos incautos que me lerem. Um hoje negregado pelo que já trouxe e inquietante por aquilo que trará. Não sei se ao mundo, ao país, à cidade ou à minha rua. Basta-me saber que a mim.

. Subi à vertical com a luz do sol. Também ela vinha em amarelo, mas esmaecido pelas pequenas hesitações do dealbar. Entreguei-me às abluções da doutrina e foi tudo quanto fiz para aguçar as capacidades mentais que já vão rombas. Nem o café redentor tomara ainda, quando saí para pôr marcos mentais no latifúndio lisboeta que guardo nas traseiras (os tais imponentes sessenta e sete metros quadrados que mais tonificam estes meus pulmões cansados do que qualquer catálogo turístico sobre a Amazónia). Mas poucos segundos de exposição ao libérrimo esplendor da natureza bastaram para reparar que vinha luz a mais do topo sudeste e logo compreender que me tinham arrancado e surripiado as glicínias (uns seres encantadores de pacífica modéstia que ali faziam uma pequena zona de sombra, no azul-lilás que o olhar aguado de Herr Fritzl acaba de tornar mal afamado).

. Há anos – já muitos, concedo – o sangue trazido às guelras ter-me-ia lançado nas aventuras de uma guerra pessoal. Teria ido várias vezes à esquadra (uma para participar; outra para depor, à hora em que o agente adequado para o efeito lá estivesse; e uma terceira para assinar o depoimento, caso não quisesse esperar pela dolorosa dactilografia monodigital do esforçado amanuense, que mais não era do que um polícia de giro sob castigo disciplinar). Anos depois, quando naquele recanto sucessivas e diferentes flores me tivessem sido roubadas e eu já nem guardasse memória das glicínias, seria chamado a depor na fase de instrução, perante gente que, vergada ao senso comum e ao excesso de trabalho, me faria perceber - e bem – como o meu zelo cidadão estava a prejudicar a justiça dos outros. Muito mais tarde, receberia enfim a explicação de que o processo contra incertos fora arquivado a guardar melhor prova.

. Hoje, já sou mais poltrão. Ou fiz recuar a fronteira do brio e da coragem. Foram-se as glicínias? Seja. Amanhã as hortênsias? Vá que não vá. Sou um país invadido que já só defende a capital: o limoeiro e as buganvílias. Aí serei uma fera, porque há sementes deles que já entraram em mim e cá ficaram. Tirarei licença de porte de arma, comprarei uma caçadeira, mandar-lhe-ei serrar os canos na rotunda do Relógio e sobretudo soltarei no jardim a fúria meridional do mini-mastim andaluz que enfrenta pardais em campo aberto. Em suma, exercerei, como cidadão, a legítima defesa da propriedade. Porque, ao contrário do que nos querem convencer, o crime contra a propriedade – não a contabilística, que preocupa os neoliberais, mas a de raiz, a da terra úbere, que comove os conservadores – é mil vezes pior e mais cobarde do que o crime contra a vida ou a integridade física. Neste, a vítima defende-se. Ou pelo menos tenta. E, se não consegue, ainda pode escolher como morrer: se na pedinchice do martírio, se na bravata do herói. No crime contra o património, não. Na propriedade, sobretudo fundiária, jaz um estar que é, todo ele, um enlevo de presença, silêncio e paz. A propriedade não se sabe defender. Não aguenta um golpe de lei, nem um golpe à margem dela. Os que a não possuem não imaginam o calvário a que estão poupados.

Assim explicado o desencanto com que parti para a extraordinária aventura que o resto do dia devia propiciar, devo então explicar o que ele ainda trará de inquietante. É o apagão cívico. Uma hora mundial e ao que parece muito fraterna, em que se empenham sete municípios portugueses (fora os que agora se propõem voluntariamente seguir-lhes o exemplo) e o entusiasmo de alguns ambientalistas – tudo sob o entusiástico patrocínio de quatro multinacionais e a comovida vigilância da EDP e da REN. Por isso, das 20h30m às 21h30m, apagaremos as luzes: nas casas, nos escritórios, nos monumentos. Para irmanar ricos e pobres, aqueles juntam-se a estes durante sessenta minutos, no jovial sacrifício de uma auto-imposta Idade Média (o que é mais exequível e barato - mas sobretudo prudente - do que conceder uma hora de iluminação dos que a não têm).

Diluídos no sofá, de telemóvel na mão esquerda, copo na mesa de apoio e comando na mão direita, até se pode ver (à luz de vela que o petróleo não haja poluído) um Portugal-Suécia - que Ban Kimoon e Madaíl terão certamente combinado estar subtraído às obrigações um tanto juvenis do prometido mundo verde.»

Diário de Notícias, 29.03.2009
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