27.1.18

Marcelo no seu espelho de selfies



José Pacheco Pereira num texto do Público de hoje:

«Os ciclos de amor e desamor políticos com o Presidente da República são isso mesmo, ciclos. Até aos incêndios e as reprimendas públicas que fez ao Governo, o Presidente era detestado à direita, que via nele uma muleta essencial da “geringonça”, e era afavelmente tolerado pela esquerda, que o via como inesperado aliado. Depois dos incêndios, passou a ser amado pela direita a tal ponto que foi a direita portuguesa a principal força “comemorativa” dos seus dois anos de Presidência. Antes via nele uma força perversa que funcionava atrás de António Costa por ódio a Passos Coelho, agora considera-o o grande disciplinador do Governo, que o impede de se deitar nos braços malditos do BE e do PCP.

Há depois uma terceira tese, que certamente não desagradará ao Presidente — é de que estas oscilações de simpatias e antipatias revelam a independência do seu mandato, nem dependente da esquerda, que governa, nem da direita, que é oposição. E, em anexo, uma quarta tese, muito vocal nos “homens do Presidente” que são comentadores em prime time, de que a sua enorme popularidade lhe dá uma força política própria, que o coloca por cima dos partidos e que em última instância lhe permite fazer literalmente o que quiser. Quem manda no país é ele, em união directa com o povo sem intermediários, que faz do Presidente o primeiro dirigente político genuinamente “popular” de há muito tempo a esta parte. Por último, uma humilde e solitária quinta tese, a minha, é de que nada disto é o que é, e apenas “parece” ser, porque não há verdadeiro escrutínio dos actos presidenciais e do seu significado e o Presidente, assim solto das amarras da crítica e da razão, faz uma política própria que tem aspectos positivos, mas também aspectos negativos e alguns mesmo mais do que negativos — perigosos.

Marcelo Rebelo de Sousa ganhou a Presidência por uma combinação de méritos próprios, uma intensa campanha conduzida na e pela comunicação social, por ele ser “um deles”, e uma conjuntura de cansaços e esperanças que teve o seu apogeu como momento de viragem em 2015 e lhe deu um país politicamente estável. Como já disse e repito, Marcelo não seria o Presidente que é sem ter por detrás uma conjuntura que todos imaginavam como altamente instável, mas que se revelou solidamente estável: a aliança política do PS com o BE e o PCP e mesmo o PAN. Pela primeira vez, havia uma alternativa à esquerda que podia competir com a tradicional aliança PSD-CDS, este grupo de partidos que funcionava como uma “frente de rejeição” do PAF, mudava a realidade nacional, pondo a direita longe de poder governar sem ter maioria absoluta. O risco de tal solução para todos envolvidos gerava uma moral de resistência, que hoje está já um pouco esbatida, mas que permitia assegurar que seriam ultrapassadas todas as dificuldades que poderiam pôr em causa a solução de governo.

Cavaco Silva fez tudo para que tal solução não fosse possível, Marcelo acolheu-a como favorável a uma estabilidade política de que ele faria parte e cujos frutos seria capaz, como foi, de recolher. Já era evidente na campanha que o terreno que desejava para a sua presidência era o da estabilidade política, e António Costa era o único que lho podia dar. Quando os primeiros resultados económicos favoráveis começaram a surgir, era ouro sobre azul e a colaboração entre Marcelo e Costa correspondia a uma respiração natural que irritava profundamente o PSD do Diabo.



Marcelo começou a ser o Presidente dos afectos, dos abraços, dos beijos, das selfies com enorme sucesso. Antes havia antipatia, quer pelo anterior Presidente, quer pelo Governo da troika, agora havia um período de um novo optimismo que precisava de um símbolo. O “povo” tinha um enorme cansaço, recusa e hostilidade para com Cavaco Silva, que faria de um qualquer seu sucessor que sorrisse uma vez por mês um génio de afabilidade. Marcelo sorriu quinhentas vezes por dia e conquistou o país. Mas a história não ficou por aí, porque ele sabe melhor do que ninguém que beijos, abraços e selfies só dão poder político se houver um adversário, se forem contra alguém. Não podia haver na cena política portuguesa dois optimistas, por isso passou a haver um que era “irritantemente optimista”, António Costa, e outro que era o príncipe dos afectos, sempre do lado do “povo” contra os poderosos, que é quem o “povo” quer sempre ao seu lado.

A tragédia dos incêndios foi o que mudou tudo. E mesmo que não apareça nas sondagens, mudou mesmo tudo. Não estou a dizer que o Presidente “usou” a tragédia para encontrar o contraponto que precisava para transformar os beijos, abraços e selfies em poder político duro — estou convencido que nos fogos no essencial a postura de Marcelo foi genuína e sincera; o que acontece é que a atitude do Presidente foi a certa na tragédia e a de Costa e do Governo a errada. E, se as coisas tivessem ficado por aí, o Presidente recolhia os méritos de uma vez por todas ter usado a sua personalidade e proximidade para sarar feridas, e o Governo recebia o demérito através de uma quebra do estado de graça que potenciará sempre qualquer coisa negativa que lhe aconteça. Mas a partir daí Marcelo passou a comportar-se como proprietário da dor dos portugueses, afirmando um poder político que extravasa as funções presidenciais. Assumiu comportamentos que são populistas — o que nele não era novidade, já os tinha tido como comentador — e passou a ter um aproveitamento pessoal dos beijos, abraços e selfies. Tudo isto já lá estava antes? Já, mas passou a funcionar como um contraponto de poder que é negativo para a democracia portuguesa, mais do que para o Governo.

Esses aspectos negativos são vários. O Presidente faz um contínuo meta-discurso sobre tudo o que acontece, seja na governação, seja na vida partidária, seja na Justiça, seja nas questões europeias, seja na cultura e, se esse metadiscurso era visto de forma benévola como a dificuldade de Marcelo-Presidente deixar de ser Marcelo-comentador, hoje é sujeito a uma interpretação que procura (e encontra) distanciações e reservas face aos outros poderes, seja o executivo, seja o legislativo. Desde sempre critiquei essa pletora verbal, porque desgastava o poder da palavra presidencial para quando fosse necessária, mas hoje está-se noutro patamar e esse mesmo metadiscurso aparece agora como um conjunto de prevenções, de sinais, de avisos que, não sendo novo nos discursos dos anteriores presidentes, no caso de Marcelo ganha outra amplitude, porque vem mais em continuidade do que foi o seu discurso de comentador de décadas conhecido pelo seu cinismo, a propensão para a intriga e mesmo ajustes de contas nas antipatias próprias. Uma espécie de amnésia colectiva esquece que esta era a “imagem” de Marcelo antes de ser Presidente, e, se se pode mudar, nunca se muda tanto.

E o que torna perigoso esse processo é que, em vez de valores de audiências, hoje temos uma base muito mais complexa que é a da “popularidade” política pessoal e intransmissível. Numa altura em que as democracias estão sujeitas ao assalto populista, temos um presidente que não se coíbe de usar as armas dos políticos populistas modernos, feitos pela televisão, para cultivar uma “proximidade” cujo sucesso é sempre ser “contra” alguma coisa.

Os gregos antigos não se caracterizavam por matar por razões políticas. Os poucos assassinatos políticos ocorridos na Grécia fazem da Atenas democrática uma excepção quase única na história antiga e moderna. Mas um dos instrumentos principais da democracia ateniense, a expulsão da cidade, era usado contra todos os que pareciam ser muito “populares”, mesmo tratando-se de generais vitoriosos. Os atenienses, nessa experiência também única, que foi a democracia antiga, temiam o efeito para a saúde da sua democracia da popularidade, porque a consideravam perigosa para o poder dos cidadãos que na colina do Pnyx se reuniam e votavam.

Mesmo a contragosto de 80% dos portugueses que “amam” Marcelo, convém lembrar que a essência da democracia não é a popularidade, em particular nestes tempos tablóides.»
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