19.2.18

Rios não confluentes



«Durante três dias observadores e oradores do congresso do PSD dedicaram-se ao “sexo dos anjos”, como lhe chamou Rui Rio: o regresso do bloco central. Se o debate é saber se o PSD está disponível para debater com o PS ou qualquer outro partido as grandes reformas que defende, é só um debate idiota. Qualquer partido que não seja liderado pelo ressentimento, como foi nos últimos dois anos, está disponível para aprovar as reformas que defende. Se se trata de permitir que o PS passe a governar com o pisca-pisca, umas vezes à esquerda outras vezes à direita, não me parece que o próximo ano e meio o permita e que seja sequer isso que esteja na cabeça de Rio. Nas suas duas intervenções Rio deixou clara a naturalidade com isto tem de ser encarado. O facto deste ser o grande cisma deste congresso diz até que ponto é nebulosa toda a restante linha estratégica de Rui Rio.

É significativo que o discurso politicamente mais clarificador na noite de sexta-feira não tenha sido o do novo líder, mas a do cessante. Passos Coelho reafirmou o que disse nos últimos anos sem que, em nenhum momento, tenha sido contrariado no congresso. A sua intervenção, que pretendeu reafirmar a natureza “pragmática” do PSD, não poderia ter sido mais ideológica. Uma intervenção fortemente antissocial-democrata, que insistiu em tratar serviços e prestações públicas como mera resposta a clientelas eleitorais. E que repisou aquela que foi a maior marca discursiva da sua liderança: a ideia de que tudo o que permita que as pessoas respirarem um pouco é irresponsável. Se é tempo de crise são necessários sacrifícios, se a economia melhora continuam a ser necessários sacrifícios para prevenir o futuro. A austeridade eterna é a promessa que Passos Coelho quer que o PSD seja portador. O problema é que se o futuro for sempre uma promessa adiada a governação faz-se sempre contra a maioria das pessoas. Passos diz que isso é não querer agradar.

O grande problema das intervenções de Rui Rio (o de abertura foi muito mais fraco do que o de encerramento), é que julga poder manter-se na linha deste discurso passista em matéria económica, mudar o tom na agenda social e fazer ruturas do ponto de vista da saúde da nossa democracia. A crise da confiança dos cidadãos na democracia não resulta de questões institucionais, como o modo de eleição dos deputados, mesmo que essa seja a forma mais fácil de lidar com o problema. Ela é transversal a países com modos muito diferentes de eleger deputados e desenhos institucionais muito distintos. A crise da democracia corresponde à incapacidade da política responder às ansiedades das pessoas. É uma crise substantiva, com uma forte relevância no crescimento da desigualdade, não é uma crise formal. E Rio acredita que é mexendo na forma que resolve a substância.

Ninguém conhece em grande pormenor o que Rio considera serem “as reformas que são precisas” em matéria de regime político. Para além de umas generalidades, umas generosas outras disparatadas, elas não passam de um nobre desconforto com uma política que se afasta das pessoas e com um discurso demagógico que ganha espaço, a que ele próprio não consegue responder. Mesmo a sua corajosa posição em relação à justicialização da política e a politização da justiça, que subscrevo na integra, pouco ou nada depende de qualquer “reforma estrutural”. E a sua coragem logo tropeçou na escolha de Elina Fraga, antiga bastonária da Ordem dos Advogados que, em 2014, fez uma queixa-crime contra Passos Coelho e o seu governo por causa do mapa judiciário. Querem mais judicialização da política do que isto? Rui Rio tenta-se afastar da política de casos e escândalo, da demagogia e do justicialismo, em que a direita partidária e mediática tem apostado. É nobre da sua parte, mas poucas vezes um líder teve tão desfasado da corrente para onde segue o seu espaço político. Ao ponto de não conseguir rodear-se de pessoas que cumpram os mínimos nesta sua exigência.



Foi no discurso de encerramento que Rui Rio tentou o tão famoso recentramento, que ameaçava tornar-se no mito urbano deste congresso. Dedicou-se, acima de tudo, às políticas sociais. Cometeu alguns erros comuns. As suas boas intenções sobre a crise demográfica portuguesa teimam, tal como acontece com o CDS, em ignorar as condições sociais, económicas e laborais que levam os jovens a não tomar a decisão de ter filhos. Num partido que nunca teve na primeira linha no combate à precariedade, a conversa sobre a demografia vale de pouco. E Rio não falou de precariedade ou sequer de emprego. Quanto à segurança social, houve um piscar de olho ao PS sobre a sustentabilidade da segurança social. Só quando chegarmos às propostas é que saberemos de que massa é feita Rui Rio. Nisto, como em várias áreas que enumerou, ficou-se por um diagnóstico consensual. A exceção foi o que disse sobre o Serviço Nacional de Saúde, em que subscrevo todas as críticas que fez a este governo e lamento que não tenha tido a honestidade de as estender ao anterior. Mas Rui Rio parece querer mudar o tom sem fazer qualquer balanço do papel do PSD naqueles quatro anos de crise. Na educação, nem o tom muda. Repegou o discurso conservador de Nuno Crato, o ministro que reverteu um dos mais largos consensos que havia na política portuguesa. Espero que o moderado David Justino tenha, no seu novo cargo, tempo para explicar umas coisas a Rui Rio.

É quando chega à economia que Rio patina e isso está muito longe de ser um pormenor. Insiste na absurda dicotomia entre mercado interno e exportações, repetindo, mesmo que num tom menos castigador, todos os erros de análise do governo de Passos Coelho. A insistência em ver o aumento do consumo interno como um problema, ignorando que ele está a aumentar ao mesmo tempo que assistimos a um crescimento económico acima da média europeia, demonstra que, apesar de toda a retórica, continua a subsistir um preconceito com a redistribuição da riqueza. Nunca chegou a altura das pessoas sentirem as vantagens do crescimento.

Juntando a intervenção de abertura e de encerramento, verificamos que Rui Rio tem um problema de dessintonia entre as suas várias agendas. Na justiça e noutras áreas, tem um forte cunho pessoal e quase nenhuma base de apoio política na área do PSD. Faz um discurso social muito genérico e quase exclusivamente concentrado no diagnóstico que se esforça por regressar ao PSD pré-passista, recentrando-o. Mas falta-lhe um discurso económico que o distinga de Passos Coelho, parecendo continuar a ver como um problema a participação de mais cidadãos nas vantagens de um crescimento acima da média europeia, visível com o aumento do consumo privado, e insistindo na falsa escolha entre exportações e mercado interno. Há uma dissociação de discursos que não se tocam para manter uma continuidade impossível com o passado recente. Ao ponto de comentadores e jornalistas acharem que Rio se aproximou, em simultâneo, do PS e do CDS. O que falta a Rui Rio é transformar as suas idiossincrasias políticas num discurso coerente. Aí acabarão as generalidades mais ou menos generosas que lhe permitem mudar o tom do PSD sem chocar com as grandes escolhas políticas que Passos fez.»

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