«O recentemente divulgado relatório do Comité Europeu para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa, que visitou Portugal em 2016, critica Portugal por abusos de violência policial, com particular descriminação racial por parte das forças de segurança. Ao mesmo tempo que aponta a sobrelotação dos estabelecimentos prisionais e das condições de habitabilidade dos mesmos, sem que investigações transparentes e independentes se façam, não obstante as queixas.
Tenho alguma experiência na matéria e até escritos sobre o assunto. Revisito por isso, aqui, alguns dos problemas que se colocam fundamentalmente à condição humana dos encarcerados e ao atávico comportamento violento das polícias nas esquadras a que são conduzidos os cidadãos, a maioria das vezes de forma ilegal, por não haver indícios de infracção, aliás situação expressamente consignada na lei e na prática tantas vezes omitida.
Na minha condição de “advogado de causas”, que fui na Ordem dos Advogados, defendi, no regime da ditadura do Estado Novo, alguns cidadãos vítimas dessas violências, praticadas impunemente pela polícia e junto dos tribunais fiz a denúncia do que se passava. Num desses julgamentos, o juiz era Godinho de Matos, magistrado íntegro e corajoso, que então absolveu o réu e, no final, disse ao chefe de polícia presente: “Não é a primeira vez que aqui aparece, mas se o fizer outra vez, tomo medidas para encerramento da esquadra e diligências sobre uma rigorosa inspecção ao comportamento policial." Referia-se então ao que se passava na esquadra da Praça da Alegria, verdadeiro açougue dos presos para aí levados, principalmente nas comemorações do 1.º de Maio. Sou testemunha destes testemunhos judiciais destes massacres e ofensas corporais sobre os detidos e lembro aqui o meu colega, José Roque, também ele defensor de muitos desses presos, quase sempre provindos da mesma esquadra.
Mas o que é inquietante é que hoje, num Estado de Direito, a condição de um detido sofra as violências de uma polícia sem formação cívica e ausente das inquietações dos direitos humanos. Pela actualidade do tema, permito-me, aqui, o seu enquadramento, num Estado de Direito como o nosso.
Vai longe o tempo deste modelo de direito penitenciário, em que o estatuto jurídico do recluso estava adstrito a uma relação de dever e de subordinação face ao Estado e à administração penitenciária, com clara limitação da dignidade pessoal e dos direitos fundamentais dos detidos e reclusos em cumprimento de pena em estabelecimentos prisionais. Era um modelo em que a gestão e o quotidiano prisional eram um espaço vazio de direito e o recluso um ser despojado da sua humanidade.
A matriz deste novo direito penitenciário é a de que os direitos fundamentais do recluso só poderão ser sacrificados nos casos e nos termos previstos na lei em que o sacrifício seja requerido pelos valores inerentes à execução da pena, salvaguardando sempre o princípio da proporcionalidade, sem prejuízo de que há mesmo direitos fundamentais — a dignidade humana, a liberdade de consciência, a igualdade e outros — que não comportam qualquer limitação ou compressão.
Assiste-se em muitos países, entre eles o nosso, a um discurso neoliberal repressivo que apela ao alargamento indiferenciado da intervenção penal às novas formas de criminalidade, organizada e de massa, que a insegurança (ou o sentimento da insegurança) potenciam e caucionam. Estes aspectos, aliados a uma percepção social da violência, do risco e da ameaça, fazem perder terreno a uma política criminal que dê prioridade à "garantia da liberdade", substituindo-a por uma "política de segurança". O discurso da lei e da ordem tende a renascer e a afirmação dos direitos e liberdades fundamentais a recuar ou a falecer de razão.
Pretendo reflectir e caracterizar sumariamente o sentido e alcance do modelo de um direito penitenciário consonante com os direitos fundamentais a partir das exigências e implicações destes direitos. A subordinação do direito penitenciário aos desígnios constitucionais mais não significa do que inscrever o direito penitenciário num programa de respeito e de promoção dos direitos humanos.
Mas a subordinação do direito penitenciário aos desígnios constitucionais exigirá sempre um modelo de respeito e de promoção dos direitos humanos, levando sempre em linha de conta o que prescreve o artigo 16.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa: "Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem."
Daí, do ponto de vista material normativo, um direito penitenciário alinhado com o programa dos direitos fundamentais deve axiologicamente reflectir esses valores e obrigar, sem qualquer cedência ao discurso do medo e da insegurança, as autoridades penitenciárias à consciência da necessidade de conformar a sua actuação de acordo com a irrenunciável ética do Estado. Mesmo sob a irritação das mais drásticas e ameaçadoras manifestações da criminalidade, a administração penitenciária deve conformar sempre essa sua actuação de acordo com o princípio da legalidade e no estrito respeito pelos direitos fundamentais do recluso.
Todo o ser humano tem direito à sua humanidade e à sua dignidade enquanto pessoa, e vão longe os tempos dos banimentos e das proscrições, não obstante a morte civil decretada pelos Estados Unidos em relação aos prisioneiros de Guantánamo — essa ignomínia que confronta toda uma civilização.»
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