8.5.18

O charme discreto da presunção da inocência



«Foi em Março, mas podia ter sido ou poderá ser num qualquer mês dos últimos anos ou dos vindouros. Tinha vários jornais comigo e num deles li o obituário da atriz Stéphane Audran. Nesse dia, já tinha lido outras coisas, entre elas várias notícias e opiniões sobre casos de justiça, e numa ou noutra questionava-se como é que alguém suspeito de qualquer coisa ainda estava numa certa função. Li e passei adiante, mas ao ler o obituário da atriz lembrei-me de um dos filmes que ela protagonizou e de como a presunção da inocência é entre nós - pelo menos fora dos tribunais, um dia direi como é lá dentro - como o jantar daquele mesmo filme: um jantar esperado, desejado e celebrado, mas que não acontece. Os mais cinéfilos já perceberam que me refiro ao filme de Luis Buñuel "O Charme Discreto da Burguesia".

A presunção da inocência, pura e simplesmente, não existe na esfera pública. Talvez nunca tenha realmente existido, talvez sempre tenha sido, apenas e só, um desejo e um comando do legislador para que se ficcionasse a sua existência (como escrevi num livrinho há quase já vinte anos). Mas, até certo ponto da nossa História, esse comando era mais ou menos cumprido na esfera pública, como se fosse uma convenção de boas maneiras. No seu íntimo, cada qual presumia (ou tinha mesmo a certeza) do que lhe parecia, mas havia um certo cuidado no discurso e nas manifestações públicas, sobretudo de quem tinha mais responsabilidades (de autoridade, formativas, informativas ou outras). Era, por exemplo, como aquelas convenções sobre o que pode ou não fazer à mesa, sobretudo na presença de visitas. Até porque a presunção da inocência sempre é uma coisa importante, até está na Constituição, e eu até arriscaria dizer (mesmo que, para além das suspeitas do costume, fiquem a olhar para mim como se fosse um espécime de museu de História Natural) que é uma trave mestra do Estado de Direito.

Mas tudo isso acabou, está morto e enterrado. Como ao grupo de convivas do filme de Buñuel, tudo correu mal à presunção da inocência na esfera pública, e quem se atreve a invocar esse comandozinho constitucional ou é parvo ou então é logo suspeito de péssimas intenções e ainda piores interesses e agendas. Às vezes, há quem, ao mesmo tempo que discorre sobre a profunda culpa de alguém que ainda não foi julgado (ou sequer acusado), diz com ares de cuidado: "Mas atenção, há a presunção de inocência, eu não sei, veremos." E eu, quando ouço isso, lembro-me logo das crianças e dos adultos descuidados que, depois de serem surpreendidos por um flato embaraçoso, tossem para disfarçar.

Assumamos as coisas como elas são, e marchemos para o velório da presunção da inocência. Desde que certos processos, por tantas razões (que justificam uma biblioteca), se tornaram tema de interesse primordial e, ao mesmo tempo, tema de espetáculo quotidiano, qualquer crença de que a presunção da inocência pode ter lugar ou vida no espaço público é pura ilusão. E não venham já as carpideiras habituais e os guardiões da moral republicana de almanaque acusar-me de interesses e propósitos obscuros, até porque não estou ainda (aqui) a valorar o fenómeno, muito menos a querer colocar travão à discussão ou ao escrutínio público das coisas. Estou, agora e aqui, apenas a constatar e a dizer o óbvio - um óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues. Acreditar hoje na presunção da inocência em processos que estão no espaço público é como acreditar no Pai Natal. E, por favor, não tussam para disfarçar.»

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