«Goethe e Beethoven conheceram-se em Julho de 1812, em Teplitz. Admiravam-se mutuamente, conviveram intensamente durante meia dúzia de dias, mas nunca mais voltaram a ver-se em toda a sua vida e, desde esse encontro, Goethe deixou sem resposta todas as cartas que Beethoven lhe escreveu até morrer, em 1827. Ao relatar esse encontro único entre os dois sóis da poesia e da música alemã, Romain Rolland descreve assim o seu irreparável desencontro: um dia, ao passearem de braço dado pelos jardins de Teplitz, cruzam-se com a imperatriz, os duques, toda a corte. O músico diz para o poeta: “Conserve o seu braço no meu! Eles é que devem afastar-se para nos deixar passar, não somos nós.” Goethe larga o braço de Beethoven e perfila-se à beira do caminho, de chapéu na mão. Beethoven passa pelo meio dos príncipes como um bólide, levando apenas a mão à aba do chapéu, e estaca mais adiante à espera que Goethe conclua os seus salamaleques e rapapés. Quando este se lhe junta, diz-lhe: “Esperei-vos porque vos honro e prezo como mereceis: mas vós destes-lhe demasiadas honras.”
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Nos países em que a cultura e a arte não conseguem viver e impor-se pela sua relação directa com os povos que as semeiam, cultivam e colhem, das duas, uma: ou o Estado acha que, paciência, temos pena, mas não há nada para ninguém, desengomem-se, mudem de profissão ou emigrem; ou o Estado acha que vale a pena fomentar a vida artística e cultural do seu povo e decide apoiar os seus artistas. Quando isto acontece, quase sempre a maioria dos agentes culturais e dos criadores artísticos, para trabalharem e viverem do seu trabalho, têm de se descobrir e perfilar, como Goethe, de chapéu na mão e cerviz flectida, perante os príncipes do seu tempo. E têm de aceitar os truques, as contumélias e o videirismo que a vida da corte exige e promove, para recolherem algumas migalhas do banquete orçamental. Esquecem uma obviedade muito antiga: não há memória de que povos que não cultivam a arte e a cultura tenham alguma vez parido príncipes cultos e esclarecidos. O despotismo esclarecido, como temos obrigação de saber, foi outra história − embora um ex-ministro da nossa cultura continue a pensar que foi ele quem o inventou.
Em Portugal, a arte e a cultura nunca foram muito queridas, nem muito respeitadas, seja pelo povo, seja pelos governantes. Não é um desinteresse ou um destratar recente, é uma forma de estar e de ser nacional com raízes históricas bem antigas e robustas. O ímpeto “cultural” que a democracia pareceu trazer nos seus primeiros anos de vida desfaleceu rapidamente perante necessidades e interesses, individuais e colectivos, bem mais prementes e compensadores para a maioria dos portugueses, incluindo os artistas e os agentes culturais. Para não irmos mais longe e para não haver dúvidas: o príncipe que nos governou com maioria absoluta a partir de 2005, ao recandidatar-se em 2009, reconheceu publicamente na campanha eleitoral que se tinha marimbado de alto e a pés juntos para a cultura durante todo o seu primeiro mandato, mas prometia emendar-se no mandato seguinte. Perante tal acto de contrição ou autocrítica (como alguns preferem chamar), muitos artistas e agentes culturais decidiram pressurosamente abrilhantar um pequeno-almoço de campanha ao lado de sua excelência. Nos dois anos seguintes de poleiro, o príncipe, que não tinha orelhas de burro, não hesitou nem um segundo em voltar a marimbar-se de alto para todos eles. A partir daí, e até hoje, tem sido sempre pior: a direita portuguesa é o que é e as esquerdas portuguesas são o que são; todas têm mais em que pensar e que fazer para se preocuparem verdadeiramente com a cultura portuguesa. Excitam-se e clamam apenas quando, na rua ou nos media, algum sobressalto as convoca para um curto surf propagandista, quase sempre inconsequente, oco e chocantemente impreparado.
O actual estado das coisas no pequeno mundo da cultura nacional não revela apenas que quem nos governa continua a não ter nenhuma ideia ou sequer preocupação de política cultural e procura resolver esse fastidioso assunto com umas migalhas vagamente mecenáticas e lampeiramente amiguitas, aproveitando o bodo para apertar, a cada ano e a cada governo, um pouco mais o garrote burocrático. O estado actual das coisas revela também que todos nós, artistas e agentes culturais que dependem do Estado para trabalhar e para criar, fomos dando cada vez mais importância à massa dos apoios a receber em vez de combatermos pela clarificação e dignificação da relação entre os artistas e o Estado, pelo estabelecimento de uma verdadeira e duradoura política cultural que comprometa e responsabilize todos os governos, pela competência dos seus agentes públicos, pela desburocratização dos seus apoios e, sobretudo, pela transparência dos critérios e dos mecanismos de apreciação e decisão política e administrativa.
Nos jardins de Teplitz, em Julho de 1812, Beethoven tinha toda a razão ao invectivar Goethe: “Esperei-vos porque vos honro e prezo como mereceis: mas vós destes-lhe demasiadas honras.”»
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