(A DOR DA GENTE NÃO SAI NO JORNAL) - Chico Buarque)
«Começo a escrever quando está o dia a nascer no Mediterrâneo. O meu relógio marca uma hora menos do que registará, caso o tenha, o de Olajumake Adeniran Ajayi, a mulher de 30 anos que, acompanhada do marido e dois filhos está agora a bordo de um dos barcos que nos próximos dias transportará para Valência, em Espanha, 629 refugiados e migrantes. Uma centena destes homens, mulheres, adolescentes e crianças estão no “Aquarius”, a embarcação que os salvou na madrugada de sábado e manhã de domingo. Os restantes seguem em duas embarcações italianas. Começaram por ser rejeitados pela extrema-direita italiana no poder, depois por Malta e de novo por Itália.
Enredada nas suas contradições e na incapacidade de assumir uma política séria e consistente, de modo a dar resposta a estas vagas migratórias, a EU foi salva no último momento da exposição crua da tragédia da sua própria insignificância. Respirou de alívio com a decisão corajosa, arrojada, solidária, e de uma grande dignidade do novo primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, ao evitar o que poderia ser uma catástrofehumanitária.
A congratulação pela lição dada por Sánchez não pode esconder, como escreve o El Mundo, que “as consequências desta decisão são imprevisíveis e seria negligente ignorá-lo. O seu impacto sobre as rotas, as expectativas dos emigrantes, os interesses das máfias e a reação nos países vizinhos é impossível de calcular”.
No Expresso Diário, Ricardo Costa escreve que “A cegueira de Bruxelas deu a maior borla de sempre aos movimentos xenófobos europeus, sobretudo aos que enfrentam rotas migratórias”.
Espanha não pode ficar sozinha no seu altruísmo. Tudo será inútil, caso a EU continue prisioneira dos seus fantasmas e não defina uma estratégia e um acordo a médio e longo prazo entre os países. A pressão migratória vai continuar e aumentar nos próximos anos e décadas, e essa é a “maldição dos ricos”, como escreve no El País o economista Branko Milanovic. África é o continente com a maior expectativa de crescimento demográfico, por isso, não adianta construir muros, como pretende a Hungria, a Eslováquia ou a Itália. Ou fechar os olhos á realidade, como disse Marcelo Rebelo de Sousa em Boston.
Para já ainda há países a aceitarem acolher refugiados e migrantes por questões humanitárias. Mas a tendência é para a introdução de um sistema de pagamento por cabeça. Não é já o que a EU está a fazer com as milionárias transferências de dinheiro para a Turquia? Se agora são um negócio controlado por máfias, os refugiados podem transformar-se num negócio à escala dos países, e com pouca diferença dos sistemas de escravatura. Quais são os limites morais do mercado? Quanto custa um refugiado?
Num mundo em que tudo se liberaliza, em particular o movimento de capitais, é revelador perceber que o único tabu, aquilo que continua a defrontar uma total resistência, é a livre circulação de pessoas.
Assim, e como não é sério passar dias inteiros das semanas todas a debater os delírios do presidente de um clube de futebol e pensar que daí não advêm consequências para a definição da sociedade que somos; como não é possível ficar indiferente ao drama de milhões de pessoas a viverem na pobreza extrema, mas sentem ter à distância de um braço de mar a hipótese de uma vida nova; como a odisseia dos refugiados e migrantes raramente consegue mais que os 15 minutos de fama enunciados por um pintor pop; como a dor da gente nunca vem no jornal, de uma forma consistente e continuada; e quando os holofotes mediáticos estão centrados no campeonato do mundo de egos de dois presidentes perdidos nos seus próprios labirintos, o Curto de hoje só podia ter como tema principal a dor da gente. A dor que conta.»
Valdemar Cruz
Expresso curto, 13.06.2018
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