18.8.18

As bodas de sangue dos rohingya



Ricardo Garcia Vilanova no Expresso de 18.08.2018:

«Os casamentos de menores não são nenhuma novidade entre os rohingya, que por tradição sempre casaram as meninas desde muito novas. No entanto, os casos multiplicaram-se de forma exponencial desde a última expulsão de mais de 700 mil pessoas desta comunidade de Myanmar (antiga Birmânia), em setembro.

Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM) tal facto também tem muito que ver com as condições deploráveis em que os refugiados se encontram nos campos do Bangladesh, com um racionamento dos bens alimentares que não chega para saciar a fome de todos os membros dessas famílias numerosas.

A OIM documentou matrimónios desta minoria muçulmana em que as noivas não tinham mais de 11 anos, e confirmou que muitos progenitores alegavam que o faziam forçados, a fim de disporem de mais comida para o resto da família.

O Expresso assistiu à boda de uma menor de 15 anos nos campos da área de Cox’s Bazar, a qual foi entregue pelos seus pais em casamento precisamente porque não recebiam uma ração de comida suficiente para sustentar toda a família.

A casa da noiva

Chegou o dia dela, é hoje o casamento, mas não parece que vá ser o dia mais feliz para Nur Fatema. A rapariga está sentada a um canto daquela que irá ser pela última vez a sua casa, a tenda que os pais ocupam no campo de refugiados de Kutupalong, Bangladesh.

Cabisbaixa e com um olhar perdido, quase melancólico, não consegue dissimular o desgosto. É muito jovem. Uns brincos dourados pendem-lhe das orelhas e do nariz, e repousa as mãos adornadas com henna em cima dos joelhos. Embora os adultos assegurem que tem entre 17 e 19 anos, ela corrige que não tem mais do que 15.

O pai, Abdur Rahman, conta que acertaram o matrimónio há dois meses com outra família conhecida da mesma aldeia onde viviam, em Myanmar. Explica que o fazem mais por necessidade do que por gosto.

“Dão-nos 30 quilos de comida duas vezes por mês (arroz, óleo, lentilhas), mas lá em casa somos sete e não chega para todos. Vamos casá-la porque temos problemas e ainda tenho outras duas filhas à espera de se casarem.”

A menina olha para ele com uma expressão de desprezo enquanto ajusta melhor o pano amarelo que lhe cobre a cabeça.

“Estás contente por te casares?”, pergunta-lhe alguém de repente. Num ato reflexo, ela morde os lábios por uns segundos de modo a não dizer o que realmente pensa. “Se a minha mãe está contente, eu também estou”, acaba por responder, satisfeita por ter encontrado palavras politicamente corretas.

Uma vintena de mulheres da família fazem companhia a Nur até que o noivo a venha buscar. Amontoam-se com as suas respetivas proles nos escassos metros ocupados pela tenda. Uma das tias dela, Hamida Begun, explica com orgulho que demorou mais de duas horas a desenhar-lhe o henna que traz tatuado nos braços e nas pernas. A maioria delas não dispõe de outra roupa senão a que trazem vestida, e por isso pintaram a cara com pigmentos amarelados para a ocasião.



A casa do noivo

A casa do noivo encontra-se a apenas cinco minutos de distância a pé, porém é preciso saber o caminho. O campo de Kutupalong é um autêntico formigueiro de tendas erguidas sem ruas, sem ordem e sem lógica alguma. A única numeração que existe avista-se do alto das colinas. Foram colocadas umas letras gigantes onde se lê “Bloco A, Bloco B...” e no interior de cada bloco, que agrupa mais de uma centena de tendas, é preciso procurar os porta-vozes de cada comunidade e perguntar-lhes por fulano ou sicrano. Com um pouco de sorte alguém há de conhecê-lo e levar-nos-á à sua tenda.

Nur Hakim, protagonista da festa, mostra-se contente apesar da sua extrema timidez. Conhecia a sua futura esposa desde Myanmar mas falaram pela primeira vez no campo de refugiados e só quando atingir a maioridade selará o compromisso. Veste uma camisa de tom azul elétrico e o gorro islâmico, do qual escorrem sem cessar gotas de suor.

O jovem casal ficará instalado em casa dos pais dele. A tenda dispõe apenas de duas divisões para as oito pessoas (e a partir desta noite, nove) que compõem a família.

“Vão dar-nos um quarto só para nós durante os primeiros dias, e depois haveremos de nos arranjar”, acrescenta Nur Hakim, enquanto tenta dissimular um sorriso envergonhado que se lhe desenha sob a penugem que faz de bigode.

A família dele também recebe a mesma ração de uns 30 quilos de comida duas vezes ao mês, e apesar de a partir de agora passar a haver mais uma boca, não receberão maior quantidade. “Não é suficiente, mas haveremos de nos arranjar”, volta a dizer o noivo, como se hoje não fosse dia de pensar em misérias.

A boda

Cerca das quatro da tarde Nur Hakim vai buscar Nur Fatema para a trazer para sua casa. Deixa-a no “quarto dos noivos”, onde esperará ajoelhada até que a cerimónia termine (quatro horas mais tarde). Ficará ali imóvel, com o rosto coberto por um véu de contornos dourados e acompanhada por uma dezena de meninas que se revezam para a refrescarem com um leque.

Penduraram no teto grinaldas de brincos-de-princesa, contudo o ambiente do aposento é irrespirável. A temperatura é extremamente elevada devido ao efeito de estufa causado pelos plásticos que fazem de parede por cima das canas de bambu.

Em fundo soa o ‘Boom, Boom, Boom, Boom’ dos Vengaboys e outros êxitos de discoteca do mesmo estilo. A música vem do quarto contíguo, onde os mais pequenos lutam para encontrar um espaço onde possam dançar dentro daquela divisão.

E pouco a pouco o odor a especiarias picantes começa a impregnar tudo. Prepararam os seus tradicionais pratos de galinha para o misturarem com arroz e o levarem à boca em pequenas bolas amassadas com a mão. As crianças, os homens e as mulheres comem em separado e por esta ordem. Há comida para uma centena de bocas, uma autêntica excentricidade nestas famílias que despendem o último grão de arroz para alimentarem os seus membros todos os dias.

Homens e mulheres separados

Com o estômago cheio, chega o momento de recuperar parte dos gastos. Isso é coisa só para homens. Levam para a rua uma mesa pela qual vão passando os convidados a fim de efetuarem uma contribuição económica, e em troca, em jeito de cortesia, recebem um cigarro ou uma folha de betel, a tradicional mistura de tabaco, noz de palmeira e cal que lhes tinge os dentes de vermelho, e produz neles um efeito tão estimulante como viciante.

Mas ainda não estão casados. Quando cai o sol, cerca das seis, ouve-se o cântico que chama à oração. Os homens acorrem à mesquita mais próxima, entre o meio milhar delas que foram erigidas nos campos (as mulheres só podem rezar em casa). E é só depois da pregação que o imã aparece para oficializar a cerimónia, para a qual a noiva não está convidada. Tão pouco o resto das mulheres.

Em nenhum momento o líder religioso se preocupa em saber se se trata de um casamento de menores, ainda que no Bangladesh isso seja ilegal. Na verdade, nem sequer se cruza com a noiva que continua confinada no quarto nupcial. Uma vez acabada a cerimónia religiosa já só falta a noite de núpcias, essa noite em que Nur Fatema se tornará mulher.»
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1 comments:

Francisco Apolónio disse...

Então as tradições e as objectivas condições não levam a estas situações?