Daniel Oliveira no Expresso diário de 17.08.2018:
«Há um pormenor revelador na última entrevista de António Costa ao “Expresso”: o momento em que, com um ar trocista, o primeiro-ministro fala de Ricardo Robles para dizer que se espantava por alguém tão vocalmente moralista ter pecadilhos. Não interessa aqui o caso em concreto, que já tratei várias vezes e a que só voltarei quando um caso similar não merecer o mesmo tratamento. Está em causa a resposta. Se há coisa em que Costa é especialista é em relativizar “pecadilhos”, sejam os de Rocha Andrade, de Mário Centeno, de Siza Vieira ou dos seus. Mas o que Costa criticou em Robles não foi o “pecadilho”, mas o seu vocal moralismo. Acontece que esse é anterior ao nosso conhecimento do negócio em Alfama. O que quer dizer que já era essa a avaliação que Costa fazia do vereador. O que é estranho, já que Robles foi o primeiro dirigente do Bloco a aceitar participar num Executivo do Partido Socialista. Logo na Câmara que Costa dirigiu e através de um acordo com o seu delfim. É estranho que se mantenha em silêncio sobre quase todos os pecadilhos do mundo e decida falar para atacar o pecadilho de um aliado. Ainda por cima, não para criticar um erro (coisa que seria normal se o costumasse fazer com os seus), mas para lhe atribuir um padrão de comportamento político estruturalmente desagradável.
Teria sido fácil para o BE ou para o PCP cavalgarem o escândalo em torno dos bilhetes de Rocha Andrade e Mário Centeno, só para pegar nos “pecadilhos” mais mediáticos. Não o fizeram. Por uma razão simples: entre os aliados da “geringonça” tem havido muitas acusações políticas, porque elas correspondem a divergências programáticas, mas não tem havido aproveitamento de casos, porque isso está no domínio da guerrilha partidária. E muito menos esses casos têm sido utilizados para caracterizar os outros partidos. A única exceção de que me lembro, e ainda assim de forma suave, foi a reação do Bloco às incompatibilidades de Pedro Siza Vieira.
Critiquei aqui o PCP quando, para defender uma posição correta, usou uma música do “Padrinho” exibindo a cara de António Costa. Porque há uma diferença entre a crítica a uma determinada escolha política, admissível a quem suporta um Governo, e uma caracterização moral insultuosa, que torna incompreensível esse apoio. Caracterizaria da mesma forma esta declaração de Costa se ela não correspondesse a um comportamento cada vez mais recorrente, sobretudo dirigido ao BE (mas não só).
Quase todas as semanas fontes do Governo, que já todos perceberam estarem muito próximas de Costa, têm colocado na imprensa muitas provocações aos parceiros de maioria parlamentar. No que toca ao Bloco, são acusações de falta de credibilidade e confiança; no que toca ao PCP, são exibições de condescendência. Em qualquer um dos casos, mas sobretudo no que toca ao partido que mais eleitorado partilha com o PS, estamos perante tentativas de provocar uma reação que permita a Costa responsabilizar os partidos à sua esquerda pela insustentabilidade futura da geringonça para ter um ambiente mais propício para ressuscitar o voto útil e pedir a maioria absoluta. Como o BE não tem caído na esparrela, é o próprio António Costa que vai levando cada vez mais longe a provocação.
A falta de empenho de António Costa na geringonça é natural. Mais vale governar sozinho do que acompanhado. Ou acompanhado por um PSD em estado letárgico do que por partidos com programas políticos e ideológicos que exigem mais capacidade negocial. Só que Costa terá de se confrontar com uma evidência: a grande diferença entre este Governo e Governos anteriores do PS foi que dependia de partidos à sua esquerda. E isso sentiu-se bastante nos dois primeiros anos de geringonça, enquanto houve acordos para cumprir.
Aos eleitores de esquerda, bastará responder a uma pergunta: acham que haverá mais investimento do Estado, maior proteção dos serviços púbicos, mais ponderação entre as necessidades sociais e as contas públicas e melhores leis laborais com o PS sozinho (ou dependente do PSD) ou com o PS a ter de negociar com BE e PCP? E quanto mais Costa se afastar da geringonça, quanto mais provocar os seus parceiros, quanto mais desesperado se mostrar por ver a maioria absoluta fugir-lhe, mais evidente será que a continuação desta solução depende da votação no BE e no PCP. Todos conhecem a arrogância do PS e do PSD quando se apanham sozinhos no poder. Quanto mais Costa exibir essa arrogância para provocar uma reação dos parceiros mais força lhes dará. Funciona como um lembrete.»
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