Francisco Louçã no Expresso Economia de 24.08.2018:
«O vídeoo de Mário Centeno sobre a Grécia tem várias leituras possíveis, desde a sua intenção (uma promoção para a almejada carreira internacional) ao seu conteúdo e impacto.
Que lições, faz favor?
O conteúdo merece ser escrito em pedra. Houve um processo do qual “todos aprendemos as lições”, começa por dizer o presidente do Eurogrupo, acrescentando logo que “isso agora é História”. Admita-se que possa haver alguma mensagem cabalística por revelar, pois não foi esclarecido o que seriam as tais saborosas “lições”, mas, se forem as referências subsequentes às “más políticas do passado” na Grécia, estaremos em puro dijsselbloemês. No mesmo dicionário cabe o paternalismo da “responsabilidade” acrescida que agora incumbe aos gregos. Mas o mais significativo é que, segundo Centeno, “a economia foi reformada e modernizada” com as medidas de austeridade, mesmo sabendo-se que “estes benefícios ainda não são sentidos em todos os quadrantes da população”, mas “gradualmente, serão”. “Por isso, bem-vindos de volta”, um sorriso e está cumprida a função, assim tipo moralista, como agora se diz.
Sobre o fracasso da política europeia imposta à Grécia já escrevi a minha opinião aqui há poucas semanas. Notei então que Moscovici, um socialista francês, se tinha excedido no paternalismo bacoco (Ulisses volta à pátria, escrevia o homem) mas que Regling, do mecanismo europeu que vai gerir os dinheiros, mostrava a mão dura que vai garantir a agiotagem. O facto é que a economia da Grécia foi destroçada, sobrevive com um surto de turismo barato e é um barco de papel lançado ao mar à espera de um milagre que se tornará num pesadelo na primeira oscilação dos mercados. O elogio do “regresso à normalidade” por Centeno é, por isso, uma forma de endossar uma política que o Governo português repetiu até à exaustão que achava errada.
A direita, o centro e a esquerda depois da austeridade
Confesso por tudo isto que agora me interessa mais o significado das respostas a Centeno, que definem contornos velhos e interessantes da política portuguesa, mas também algumas novidades.
A direita aferrou-se ao assunto. Argumento: o ministro é contraditório, apoia na Grécia o que diz rejeitar em Portugal. Tudo certo. Mas este argumento é um berbicacho para o CDS e o PSD. Primeiro, porque o que criticam a Centeno não é o que faz, mas é não dizer o que faz, porque no seu sucesso só estaria a completar o que a direita iniciou, essa austeridade que é o caminho da virtude. Ora, é pueril atacar um governo por fazer o que o próprio crítico entende estar certo.
Na questão grega, outra vez a mesma efervescência: “duas caras”, diz Miguel Morgado, “duas caras”, protesta com originalidade João Almeida. Mas de que cara é que gostam e qual odeiam? A austeridade portuguesa foi ótima, a grega mais exagerada, dizem, mas Centeno é continuador de Vítor Gaspar e por isso é dos nossos, logo detestamo-lo. Que haja alguém nesta direita que ache que esta conversa move o eleitorado é um sinal fatal de perda de sentido da realidade. Morgado e Almeida, que estavam de turno no comentário estival, aproveitam todas as oportunidades para lembrar ao milhão de eleitores que lhes fugiram em 2015 que estão contentíssimos com aquela política que levou Portugal a agravar a recessão. Tudo previsível, portanto.
Na esquerda, alguma desilusão. O PCP fez o comunicado do costume, o problema é o “embuste” da União Europeia. E é, mas o problema é também quando não se discute o problema. O Bloco preferiu dizer que a tese implícita de Centeno, o sucesso do programa grego, seria “insultuosa para os gregos e esclarecedora para os portugueses”. Será assim tão claramente? Em todo o caso, faltou a pedagogia do debate. O discurso de Centeno mereceria mais perguntas: se este é o “regresso à normalidade”, se é assim que a “economia é reformada e modernizada”, então vale mesmo o corte nos salários e pensões? E a privatização dos portos, aeroportos, energia e banca, e a destruição dos serviços públicos? Porque essas são as questões que importam sempre que há uma crise e, isso sim, serve de “lição” para Portugal.
Finalmente, a resposta mais significativa de todas veio do PS, precisamente do seu anterior porta-voz, João Galamba, no mais duro dos comentários. Disse-se que foi voz única, mas o silêncio deve ser medido não tanto por não ter havido outras críticas escritas, mas muito mais pelo silêncio constrangido dos dirigentes do PS. Só depois de muita celeuma é que Ana Catarina Mendes lá veio tecer loas ao presidente do Eurogrupo, limitando-se a dizer que ele é muito importante e evitando o assunto melindroso, explicando que ela não gosta da austeridade (mas ele gosta se for na Grécia). O embaraço é visível, afinal não foi nada disto que disseram na campanha eleitoral.
A troika é um debate dentro do governo
Há nestes debates uma revelação e isso é importante. Há pelos vistos quem tema o peso da aliança Centeno-Santos Silva no Governo, e que sinta que, se assim for, a política vai sendo conduzida por atoardas cínicas de um ministro anónimo nos jornais, mais uma austeridade que se sente irracional (o ministro das Finanças ir ao Parlamento responder na comissão de saúde pelo atraso dos concursos de médicos especialistas para poupar uns tostões, ou adiar investimentos que serão depois mais caros, por exemplo).
A cruz do problema é que, ao elogiar a troika na Grécia, o ministro está também a dizer que, afinal, quando a economia aperta, a receita tem que ser a mesma de sempre. Note-se que a chave da austeridade na Grécia era a mesma da de Portugal: aumentar impostos e cortar rendimentos. E que o congelamento de pensões mais o corte em prestações não contributivas mais a redução da TSU patronal estavam no programa de Centeno e que teriam sido cumpridas se o PS tivesse tido maioria absoluta em 2015. Assim, se há coisa que o episódio do vídeo “simpático” demonstra é que estas velhas obsessões com a troika cortista se mantêm na “propaganda norte-coreana” da austeridade.»
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