29.9.18

A chazada marcelista



Daniel Oliveira no Expresso diário de 28.09.2018:

«Aníbal Cavaco Silva aguentou dois anos calado. Ou pelo menos sem opinar sobre o mandato do seu sucessor. Mas, com a direita passista e mediática (redundância) em fúria com a saída da procuradora, transformada contra a sua vontade em Passionaria do justicialismo, ele não aguentou. Achou que estava ali um chamamento. E se Passos saltou do seu túmulo político, Cavaco saiu do seu jazigo. Para dizer, esperando que o país estremecesse: “Sou levado a pensar que esta decisão política de não recondução de Joana Marques Vidal é talvez a mais estranha tomada no mandato do Governo que geralmente é reconhecido como geringonça”.

Este regresso dos mortos-vivos não teve nada a ver com António Costa ou com Joana Marques Vidal. O alvo era apenas um: o homem que lhes tirou o palco à direita. Mas nenhum teve a coragem de o nomear. Porque os dois sabem que Marcelo Rebelo de Sousa é, continua a ser, muitíssimo mais popular à direita do que qualquer um deles. Tentaram, por isso, fazer uma tabelinha: criticando Costa, de quem os seus eleitores não gostam, acertavam em Marcelo, associando-o ao primeiro-ministro.

Só que Marcelo sabe mais a dormir do que Cavaco e Passos a jogar crapô. Em vez de se fazer de morto, esperando que a bala lhe passasse ao lado, pôs-se à frente dela e gritou o óbvio, para quem conhece a Constituição da República (artigo 133º): “A nomeação da procuradora-geral da República foi uma decisão minha e de mais ninguém. Portanto, o que me está a dizer é que o Presidente Cavaco Silva, no fundo, disse que era a mais estranha decisão do meu mandato”. Poucas vezes se viu, na política nacional, tamanho ricochete. Foi só o verdadeiro visado de um ataque dizer ao sonso que era ele o visado do ataque. A extraordinária popularidade de Marcelo e a extraordinária impopularidade de Cavaco tratam do resto.

Depois de explicar ao antigo Presidente que “quem nomeia a procuradora são os Presidentes, não os Governos”, Marcelo fechou a conversa com uma chazada: “Entendo que, desde que tenho estas funções, não devo comentar nem ex-Presidentes, nem amanhã quando deixar de o ser, futuros Presidentes. Por uma questão de cortesia e de sentido de Estado.” Há quem julgue que ter sentido de Estado é não tirar selfies e fazer um ar sisudo. Mas a falta de sentido de Estado de Cavaco é uma constante da sua vida. Desde momentos graves, como aquele em que, perante a possibilidade de nomear um Governo que não desejava, insultou um quinto dos eleitores portugueses (que votaram BE e PCP), aos mais pequenos, quando foi espalhando piscinas pelos palácios por onde passou, como se fossem casas suas. Ou quando publicou nos seus diários diálogos recentes com políticos no ativo, traindo o dever de reserva que lhe era exigido. Totalmente alheio ao espírito democrático e republicano, Cavaco nunca percebeu que era ele que passava pelos cargos, não eram os cargos que passavam por ele.

A vida política de Cavaco Silva acabou sem qualquer dignidade, com níveis de impopularidade nunca conhecidos por um Presidente eleito, distante do seu povo e contentando-se em representar uma fação política. Como o homem que raramente se engana e nunca tem dúvidas, que para ser tão sério como ele seria preciso nascer duas vezes, tem sobre si uma imagem deformada pela vaidade e pela soberba, acredita ter sobre os portugueses um poder que há muito perdeu. Cavaco Silva julga que os portugueses olham para si e veem o mesmo que ele vê quando se olha o espelho. Estava à espera do momento certo para dar a ferroada ao Presidente que o fez esquecido em poucos dias. Julgou que quando falasse o país pararia, Costa tremeria, Marcelo se esconderia. Não percebeu, nunca perceberá, que um ataque seu não beliscaria o Presidente. Que uma das razões para Marcelo ser popular é ter vindo depois de Cavaco. É não ser Cavaco. É ser o oposto de Cavaco. Com o ataque sonso que fez e a severa chazada que recebeu, apenas deu ao Presidente, depois de uma decisão politicamente difícil, mais umas vitaminas. Se aparecem reticências em relação a Marcelo, o melhor que lhe pode acontecer é o país lembrar-se que antes era Cavaco.»
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