Daniel Oliveira no Expresso diário de 26.09.2018:
«Não preciso dizer que nada sei sobre o que realmente aconteceu em Tancos. Como muitos portugueses, há algum tempo que desconfiava que a coisa vinha de dentro ou tinha a cumplicidade interna. Mas as minhas suspeitas valem zero porque não se baseiam em qualquer prova. Sabe-se que o principal suspeito é um ex-militar e que terá havido cumplicidade da Polícia Judiciária Militar (PJM) na devolução das armas. A acusação é gravíssima mas não posso dizer que fiquei espantado. O mesmo não digo em relação à detenção do diretor da Polícia Judiciária Militar. Fiquei espantadíssimo.
Se as coisas são o que parecem, não é o crime que virá a envergonhar as Forças Armadas. Não é sequer a insegurança. É o ridículo. Havia um tipo que tinha gamado umas armas, coisa sem importância. Mas aquilo, vai-se lá saber porquê, apareceu na televisão. Ele assustou-se e quis desfazer o erro. Como o ladrão era um ex-militar, tinha um amigo na GNR que falou com outro que conhecia um gajo lá na PJM. E trataram de devolver tudo e até mais um bocadinho, que um homem perde-se no inventário. Isto é o que parece mas não pode ser, porque transformava a nossa tropa numa anedota.
Do que se percebeu até agora, houve, talvez por a história ser ao mesmo tempo tão grave e tão estúpida, algum cuidado institucional por parte do Ministério Público. A procuradora-geral da República teve um encontro com o ministro da Defesa. O diretor do DCIAP e Joana Marques Vidal fizeram a entrega formal da notificação da detenção a Azeredo Lopes e esta só foi concretizada depois, por militar de patente superior. Este tipo de cuidados não são geralmente compreendidos no clima demagógico que tomou a vida pública. Mas eles são essenciais. Uma das funções da Justiça é preservar as instituições públicas e isso implica que, em cada investigação, o dano que se causa deve ser o estritamente necessário para que se faça justiça.
Ter a Polícia Judiciária (PJ) a deter o diretor da PJM não é coisa que se veja todos os dias. Para a maioria isto será motivo de celebração: a Justiça não teme ninguém. Compreendo, mas a minha primeira reação é a oposta: é motivo de grande preocupação. Guardo a satisfação para o fim, quando se fizer justiça e esperando que o crime tenha ao menos um pouco mais de dignidade do que suspeito. Esta detenção é um passo de gigante e põe, quase tanto como a suspeita, em perigo a credibilidade da instituição militar ao mais alto nível. Apesar eu não ser um militarista, acredito que devemos preservar a imagem das instituições públicas.
Por isso, tenho a convicção de que esta detenção resultou de indícios muitíssimo claros que envolvem diretamente e de forma inequívoca o diretor da PJM. E nem por um segundo quero que me passe pela cabeça que há, neste processo, qualquer tipo de guerra corporativa. Estando envolvido o topo da hierarquia militar numa história tão estranha, estou certo que não assistimos a irresponsabilidades como aquela busca ao Ministério das Finanças por causa de uns bilhetes de futebol.
Não porque eu ache que os militares estão acima da lei e não devam ser investigados quando há suspeitas sérias de crimes. Pelo contrário, há algum tempo que acho que algumas instituições militares vivem como se fossem um Estado dentro do Estado (na realidade, acho mesmo em relação a algumas instituições da Justiça). Os contornos desta história mostram, aliás, os perigos de qualquer instituição viver fechada em si mesma. Mas recuso aquela ideia muito em voga de que a persecução da Justiça possa ignorar a preservação das instituições públicas. Porque sem elas a Justiça está condenada: só há Justiça com democracia e só há democracia com instituições fortes. Assim sendo, a única coisa que se exige é ponderação e bom-senso. Os cuidados da procuradora-geral, ao fazer um contacto prévio com o ministro da Defesa, fazem-me acreditar que desta vez alguém percebeu isso. Até porque suspeito que no fim o ridículo de toda esta história será tão grande que é melhor dar aprumo ao que não tem aprumo nenhum. Já nem a roubar há disciplina.»
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