19.10.18

Brasil. É fazer força para respirar Guerra civil à brasileira



«Em nossos planos a respeito do futuro, não contávamos com a hipótese da emergência de uma ditadura. Ela provavelmente virá.

Não deixa de ser curioso que, na vigência da democracia – mesmo nas menos intensas e mais estropiadas -, nossas expectativas usuais sejam de natureza não-política: cuidar dos filhos, fazer um regime, levar a neta ao infantário.

É que a vida sob o Estado de Direito nos envolve com camadas invisíveis de proteção, perceptíveis apenas quando nos faltam. Tal como o ar que se faz presente, por paradoxo, quando suprimido; quando a busca ativa e agônica substitui o modo automático e irrefletido da respiração. De agora em diante, na ordem natural das nossas expectativas, as de natureza política terão lugar compulsório. É fazer força para respirar.

A ditadura provavelmente virá. Ela, na verdade, já está inscrita na ordem das coisas, assim como na perspectiva de desordem na vida quotidiana: os demônios ativados não voltarão às garrafas; estão soltos nas ruas e pretendem delas se assenhorar, com a vitória provável do Chefe.

A ditadura, se vier, virá pela expressão do voto majoritário: vox populi ou, segundo alguns, Deus vult. Fixar-se-á pela conivência do sistema de Justiça – Judiciário e Ministério Público - que imaginávamos, em 1988, como barreiras aos liberticidas e, até mesmo, como factores de extensão dos direitos do povo brasileiro.

Virá, se vier, pela indiferença das forças da ordem diante da violência esquadrista que já se insinua na experiência quotidiana. Diante da ameaça ou da consumação de agressões, a polícia tenderá a ser um elemento gravoso. Não contemos com ela: é o que sugere a reação do delegado de polícia, no Rio Grande do Sul, ao deparar-se com a suástica talhada a canivete no corpo de uma mulher agredida e dizer que se tratava de um “símbolo budista de paz”.

O provável futuro presidente lamenta não terem sido eliminadas trinta mil pessoas pelo regime militar pregresso. Convoca expressamente à matança de petistas, tal como fez em comício no estado do Acre. Diz que vai acabar com todos os “ativismo sociais”. Ao mesmo tempo em que diz que quer “unir o Brasil”, o que imagina fazer a seguir à devida profilaxia, então não? Este é, na verdade, um ponto que merece melhor inspeção.

Bolsonaro está a ser associado à onda ultradireitista e populista que assola o mundo democrático em geral. A evocação de causa remota, se pertinente, relativiza a maternidade exclusiva dos brasileiros a respeito do fenómeno. No entanto, os resultados serão os mesmos: autóctone ou não, os efeitos da ditadura, caso venha, serão os mesmos. Doerão da mesma forma.

No entanto, creio caber ressalva à dissolução do infortúnio brasileiro no âmbito da onda geral. É que nos países por ela afetados – na verdade, em todos eles - o inimigo a combater é externo. São casos nos quais se aplica o terrível silogismo detectado por Primo Levi, em seu clássico livro “Se isto é um homem”: se todo estrangeiro é um inimigo e todo inimigo deve ser abatido, por maioria de razão todo estrangeiro o deve ser.

Com efeito, o ódio ao imigrante e ao refugiado constituiu-se como matriz de uma filosofia pública que corrói a razão democrática e infecta as formas usuais da vida. Em uma palavra, a abjeção da extrema-direita europeia tem como elemento fulcral o ódio ao estrangeiro ou ao estranho.

A abjeção da extrema-direita brasileira reside no ódio a uma parte dos próprios brasileiros. Não duvido que, caso tivéssemos pressões imigratórias – tal como já se começa a ter com a crise venezuelana – tais demônios seriam igualmente desarrolhados. Isto a despeito de nossa tradição na matéria: o segundo governo de Lula, por exemplo, legalizou cerca de 30.000 estrangeiros no país.

Volto ao ponto: trata-se aqui e agora de ojeriza a uma fração dos próprios nativos; a opositores políticos e sociais em vias de se tornarem dissidentes. Contra tais dissidentes, a linguagem empregada é a da guerra e do extermínio, já que não há como os expulsar. Não parece haver para eles lugar na comunidade nacional, facto que exige depuração.

Sustento que esse quadro define a premissa maior para a deflagração de uma guerra civil. Não estou a fazer profecia; aponto tão somente os termos gerais postos pela força que desaba sobre nós. Símbolos e palavras, julgo, produzem efeitos sobre a manufatura do mundo. Mas, para além de símbolos e palavras, importa dizer que os operadores iniciais da guerra proliferam, a gerar um quadro de ameaças e desordem.

A ação dispersa, generalizada de intimidações aos dissidentes poderá gerar um efeito de contenção. Em caso contrário, se no lugar da contenção houver revolta, temo que os profissionais entrem em cena, no lugar dos grupos de assalto e cercados das devidas prerrogativas legais. Para isso temos o sistema de justiça instalado no país.

O medo político passa a fazer parte da economia de nossas paixões. Assim, damo-nos conta do quanto a interação entre os humanos pode dar passagem a experimentos potencialmente letais.»

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