«Amanhã, Deus vai provar que se fartou de ser brasileiro e vai dar ao Brasil o pior Presidente da sua história: Jair Bolsonaro. Vai dar-lhe um Presidente que pela sua boçalidade, pela sua arrogante ignorância e desprezo pela cultura e pelos simples valores daquilo a que chamamos sociedades civilizadas, pelo seu apelo ao ódio e à violência, pela sua indisfarçada vontade de perseguir os mais fracos e pobres dos brasileiros, de discriminá-los pela cor, pelo sexo, pela raça e pela classe social, deveria encher de vergonha aqueles que, de entre os seus votantes, são os mais bafejados pela fortuna e pela educação — e que são precisamente, dizem as sondagens, os que mais entusiasticamente se preparam para levar ao Planalto um fascista declarado. Todos os que amam deveras o Brasil jamais lhes poderão perdoar. Tudo, menos o Brasil de Bolsonaro.
Desses, já ouvi toda a espécie de autojustificações — primeiro, dadas de mansinho, envergonhadamente, tentando convencer que quem olha de fora não sabe o que se passa lá dentro; depois, já de forma clara e sem vergonha alguma, mesmo com orgulho — um orgulho que nem é abalado por se juntarem à massa ignara dos 70% de brasileiros que recolhem toda a sua informação no WhatsApp e no Facebook, que passam o dia a receber informações que sabem ser falsas e divulgá-las adiante, e a quem também nada incomoda que o seu valente candidato se acobarde sob uma falsa convalescença para fugir ao debate e ao confronto com o seu adversário. Aliás, nem lhes interessa saber o que ele pensa sobre o que quer que seja, basta-lhes saber que é contra o PT e que, se preciso for, os vai prender, torturar ou matar, conforme ameaça — não se sabe ainda se apenas como desejo ou mesmo para valer. Porém, se tudo se resumia a votar contra o PT, podiam ter escolhido Alckim, à direita, ou Ciro Gomes, no centro-esquerda. Mas preferiram a extrema-direita fascista e, com eles, arrastaram o Brasil. Não, não têm desculpa alguma. Mesmo que seja uma verdade penosa constatar que o próprio PT deu uma contribuição decisiva para o descrédito das instituições democráticas brasileiras e que, face à emergência de uma real ameaça fascista e sabendo da rejeição que o partido tinha junto de uma larga maioria de eleitores, não foi capaz do gesto patriótico de renunciar a uma candidatura presidencial e apagar-se perante quem pudesse travar Bolsonaro. Mas daí a apoiá-lo vai uma imensa diferença, que cobrirá para sempre de vergonha quem o fez. O Brasil de Bolsonaro não.
Meus íntimos irmãos brasileiros: eu não quero dar lições algumas a ninguém e por favor não me confundam com um Boaventura Sousa Santos. O país é vosso, o voto é vosso e até são livres de eleger quem o vá destruir de alto a baixo, da Amazónia até ao Rio Grande do Sul. Podem, com o vosso voto de amanhã, ajudar a restabelecer a ditadura, por golpada parlamentar e emenda constitucional ou por quartelada concertada com o capitão Bolsonaro. Podem convencer o povo de que a corrupção, a miséria, as desigualdades sociais, o crime e a violência são tudo obra exclusiva do PT ou culpa da democracia e não responsabilidades antigas e próprias — como se demonstra, por comparação, olhando para a história das democracias e das ditaduras. Podem, sinceramente (embora incompreensivelmente, para mim) acreditar que, sacrificando a democracia, resolvem todos os problemas endémicos do Brasil. Podem tudo isso, mas não podem impedir que quem cresceu a amar o Brasil da liberdade seja incapaz de continuar a amar o Brasil fascista. O Brasil de Bolsonaro será vosso, porque assim o quiseram; de quem, de fora, ama o Brasil, não.
Talvez a esses brasileiros lhes pareça coisa pouca o que o mundo de fora possa pensar deles, depois de amanhã: é mais um país que cai nas garras do populismo e da extrema-direita e também os vamos tendo na Europa, apesar da União Europeia e de tantas décadas de paz, de prosperidade e de respeito pelos direitos humanos e das minorias. É mais um país que vê manipulado nas redes sociais o que deveria ser o voto informado dos cidadãos, esse cancro que corrói por dentro as nossas democracias e que me garantem ser inútil de combater, pois que os tempos são outros, o mundo mudou e quem o não entende fica para trás. Somos então Velhos do Restelo a assistir, sem argumentos nem defesa, ao triunfo dos Salvinis, dos Victor Orbáns, dos Bolsonaros. Talvez, portanto, lhes pareça coisa pouca a polícia que atira para matar sem questionar, que tortura antes de perguntar, que faz desaparecer sem inquérito, um Brasil que prende, que exila, que censura a música, a imprensa, a literatura, a política, o pensamento. Sim, eu conheço todas as tropelias que o PT levou a cabo, segui de perto o ‘Mensalão’ e a ‘Lava Jato’, vi vários deles cederem à corrupção, ao tráfico de influências, ao luxo e ao deslumbramento com o dinheiro — como antes e depois do PT vi acontecer com todos ou quase todos os que se sentam no Congresso e que agora vão tratar de negociar com Bolsonaro, como antes negociaram com Sarney, com Collor, depois com Lula e depois com Temer, e vendendo os seus votos como sempre. Mas era preciso eleger como Presidente quem cometeu a infâmia de votar na golpada parlamentar do impeachment de Dilma homenageando o seu torturador? Não, o Brasil deste homem não.
Infelizmente, não vai haver milagre que impeça a vergonha à 25ª hora. Porque, mesmo que Deus existisse, e fosse ele infinitamente justo como dizem, só poderia e deveria estar já farto do Brasil. Deu-lhe sete vidas e todas os brasileiros deitaram fora. Deu-lhes um país de sonho, abundante em riquezas como poucos outros no mundo, e eles vivem ainda a queixar-se do ouro que D. João V lhes roubou, o célebre “quinto real” — que seria um quinto de todo o ouro extraído, tivesse esse quinto alguma vez chegado ao Reino, o que nunca aconteceu, nem de perto nem de longe. Deus é bem mais preciso noutras paragens, onde nem a miséria, nem a corrupção nem as ditaduras são escolhidas por voto ou conivência popular e por demissão das elites ao longo de gerações. Aliás, Deus, no Brasil, foi usurpado e é agora representado pelas Igrejas Evangélicas, cujos bispos viajam de jacto privado, vivem no luxo e na abundância, são donos de rádios e televisões e cobram metade efectiva do quinto real aos seus fiéis, com uma ferocidade e eficácia de que nenhuma repartição de Finanças é capaz. Com a sua leitura particular do Evangelho, concluíram que o reino de Deus é, sim, deste mundo e ocupam já um quarto dos lugares do Congresso, tendo proclamado o seu apoio ao capitão Jair Bolsonaro, “enviado do Senhor” para combater o “anti-Cristo”. Deus foi-se embora dali: deixou ao Brasil os braços abertos do Cristo do Corcovado protegendo o nosso Rio de Janeiro antes que um aventureiro lhe lance mão, os seus apóstolos do Aleijadinho em Congonhas, as igrejas de Olinda, ou a catedral flutuante e mágica de Brasília, obra do ateu Niemeyer, o único templo católico do mundo onde Deus não esmaga os fiéis, antes lhes dá asas para voarem ao seu encontro. Esse Brasil sim. Mas o Brasil deste proclamado ungido de Deus não.
Assim, abençoado pelas Igrejas dos novos crentes e tementes, propulsionado pelas redes sociais que são a democracia dos novos tempos, pelas mentiras compradas em pacotes no WhatsApp que são o novo jornalismo, empurrado pelos empresários que se esqueceram de prender e pelos políticos que esperam amnistia, pelos juízes-justiceiros que se darão por saciados, pelos militares que se darão por bem lembrados, pelos letrados que se imaginam revolucionários atrás de um capitão que não tem pudor de mostrar o que não sabe e não pensa, pelos que têm fome e sede de justiça e imaginam que irão ser saciados, pelos que têm fome e que julgam que se irão ocupar deles, pelos que têm medo e a quem prometem um revólver contra os bandidos, pela grandiosidade de um Fernando Henrique Cardoso que prefere morrer enferrujado na porta que se vai fechar, 210 milhões de brasileiros vão amanhã à noite mergulhar numa escuridão de onde ninguém sabe quando será o regresso e a que preço. Para a História ficará o registo de um povo que se suicidou por sua livre vontade. E não haverá história mais triste do que esta para contar. Boa noite, Brasil.»
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