«A discussão em curso sobre a nova lei de bases da Saúde é por vezes apresentada como um debate entre quem pretende melhorar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e quem por razões ideológicas ou corporativas pretende deixar tudo como está. Esta forma de enquadrar a polémica é triplamente equívoca. Primeiro, é hoje consensual que há problemas sérios no funcionamento do SNS e que são necessárias novas soluções. Segundo, todas as partes do debate são influenciadas por razões de natureza ideológica. Terceiro, os factores decisivos para o futuro do SNS não são hoje as considerações técnicas nem as convicções ideológicas - são os interesses em jogo e a capacidade que têm de impor as suas vontades.
A questão central no actual debate sobre o futuro do SNS é a relação entre o Estado e o scetor privado empresarial. Não se trata de saber se devem ou não existir serviços privados de saúde. A par com o Estado e o sector social (onde o papel das Misericórdias é central), o sector empresarial é um actor institucional estabelecido e reconhecido no sistema de saúde português. O debate centra-se hoje em saber se deve ou não o Estado contribuir para reforçar o papel deste sector na provisão de serviços de saúde em Portugal.
De facto, embora a Constituição portuguesa estabeleça como dever do Estado a protecção da saúde através de um através de um SNS universal e tendencialmente gratuito, o sector privado tem assegurado alguns serviços essenciais. Áreas como a medicina dentária, os exames de diagnóstico, a diálise e a fisioterapia são ainda hoje escassamente cobertas pelos serviços públicos de saúde, embora o recurso aos prestadores privados seja em larga medida financiada pelo Estado (por via de convenções, benefícios fiscais, etc.). Até aqui os serviços públicos continuaram a assumir um papel central na provisão de cuidados de saúde pública (por exemplo, na vacinação), nos cuidados de saúde primários (principalmente nos centros de saúde) e nos serviços hospitalares. Mas o cenário aqui descrito tem vindo a mudar.
Há 30 anos a saúde privada em Portugal consistia maioritariamente em actividades dispersas e de escala reduzida. Algumas empresas providenciavam aqueles serviços que o Estado nunca assegurou. Por seu lado, grande parte dos médicos complementava o exercício da profissão no sector público com actividades mais ou menos frequentes em consultórios e clínicas privadas de pequena dimensão. Por vezes, a acumulação de funções públicas e privadas - e a recorrente confusão de papéis - provocou distorções e ineficiências no funcionamento do sistema público. No entanto, a possibilidade que era dada aos médicos de exercerem actividades públicas e privadas em simultâneo funcionou - e continua a funcionar - como válvula de escape do sistema, face à incapacidade do Estado em remunerar os profissionais de saúde de acordo com as suas aspirações. Tanto ou mais do que colmatar as deficiências no funcionamento do SNS, era esse o papel tradicional da medicina privada em Portugal.
Desde então, o panorama da saúde privada em Portugal mudou radicalmente. Nas últimas duas décadas assistiu-se a uma expansão acelerada do sector privado em Portugal, com uma natureza muito distinta do que sucedia tradicionalmente. Os projectos empresariais na área da saúde assentam hoje em grandes grupos económicos que apostam em simultâneo na criação e gestão de centros hospitalares e na oferta de seguros de saúde que alimentam uma boa parte da procura dos hospitais privados. Estes hospitais não se dedicam apenas aos internamentos, absorvendo também uma parcela cada vez maior das consultas em regime ambulatório, conduzindo assim à crescente concentração da oferta de saúde privada.
Os investimentos dos grupos económicos no sector da saúde seguem uma lógica estritamente financeira. O seu objectivo é não apenas gerar e distribuir lucros, mas também apostar na valorização imobiliária dos edifícios que adquirem e captar as poupanças dos indivíduos e famílias através da actividade seguradora. Os recursos financeiros assim obtidos não são necessariamente investidos na expansão e melhoria da qualidade dos serviços de saúde prestados, estando antes sujeitos às estratégias de gestão de portfólio comuns a qualquer grupo económico, sejam quais forem as suas áreas de actuação.
Não é surpreendente que os grupos privados que investem neste sector se empenhem em transformar o SNS, visando promover a expansão da oferta privada. O objectivo é recentrar o papel do Estado, tornando-o essencialmente em financiador do sistema de saúde e deixando para os privados a provisão de uma parcela crescente de serviços. Se tal evolução traria benefícios para o conjunto da sociedade é outra questão.
O processo de financeirização da saúde acima descrito não é uma especificidade portuguesa, sendo observável em vários países do mundo. Os riscos deste processo têm sido debatidos internacionalmente e incluem: a tendência para a dualização dos cuidados de saúde (ou seja, a existência de serviços privados de maior qualidade para ricos e serviços públicos com recursos reduzidos para pobres); a degradação e a precarização das condições laborais dos profissionais de saúde, sujeitos à pressão permanente para a geração de lucros; a redução a médio-prazo dos níveis de investimento no sector; a delapidação da legitimidade democrática de um serviço público de saúde geral e universal (já que as classes médias, sobre quem cai o grosso da carga fiscal, começam a questionar a razão de ser do seu contributo para o sistema); e, não menos importante, a captura das agências públicas por interesses cada vez mais poderosos e cujos lucros dependem crucialmente da actividade reguladora do Estado.
Este debate é, com certeza, influenciado por convicções ideológicas. De um lado há quem esteja convencido que a pressão da concorrência é sempre factor de melhoria de qualidade; do outro quem considera que a lógica de mercado não conduz necessariamente à eficiência e muito menos à equidade em todas as esferas da vida em sociedade. Não existem ainda muitos estudos que permitam a qualquer uma das partes reivindicar a validade das suas convicções.
Seria bom que nenhuma reforma estruturante do sector da saúde fosse feita sem ter por base dados mais sólidos sobre a sua pertinência. Não é para aí que as coisas parecem caminhar. Mais do que a ideologia ou a ciência, hoje na saúde são os interesses que falam mais alto.»
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