13.10.18

O Orçamento da burocracia de Bruxelas



José Pacheco Pereira no Público de hoje:

«Ele é preciso estar sempre a repetir as mesmas coisas, porque há uma intencional dureza de ouvido, que ao menos vale a pena incomodar. Repito: o Orçamento de 2019 que vai ser apresentado ao Parlamento português não é nem português, nem é decidido pela Assembleia da República, nem é o que vai ser aplicado, nem é o resultado das “regras europeias”, não é nenhuma coisa daquelas com que vai ser designado. Voltando a Orwell, é um exemplo primoroso do doubletalk parecido com a designação da defunta República Democrática Alemã, que não era nem república, nem democrática, nem alemã.

Voltamos às repetições: o Orçamento não é português, é estrangeiro, subordinado aos interesses dos nossos credores e às políticas que eles impõem, que não são “portuguesas” num aspecto fundamental — é que não servem o interesse nacional, nem as necessidades de desenvolvimento do país, mas apenas a submissão às políticas alemãs e à vulgata política da troika disfarçada de inevitabilidade económica. O Orçamento serve o pagamento da dívida transformado no alfa e no ómega de toda a política de défice zero. Há outras coisas sob o mesmo céu, mas aqui o sol não nasce para todos.

O Orçamento não é aprovado pelo Parlamento português, que apenas assina de cruz um texto que é decidido em Bruxelas e no Eurogrupo, que tem um direito efectivo de veto sobre as suas medidas. A perda do poder orçamental do Parlamento português, nunca discutida, nem decidida pelos portugueses, é uma das mais graves entorses da nossa democracia. O Parlamento, cuja função orçamental é crucial na identidade de qualquer parlamento em democracia, está castrado nessa função e uma elite, que fala fininho como os eunucos nas óperas antigas, faz a rábula de uma autoria e de um poder que não tem. Também não é verdade que a perda de soberania do Parlamento seja o resultado da adesão aos tratados europeus, visto que muitas das “regras” que recitamos como um mantra não estão em nenhuns tratados, alguns dos quais, como o de Lisboa, foram “vendidos” com dolo, apresentados como reforçando os poderes dos parlamentos nacionais. Quem conheça a burocracia europeia em acto, com a sua enorme arrogância, ao considerar que governa melhor os países da União do que os políticos eleitos, sabe muito bem como se fez e com quem se fez o caminho para a submissão de países como Portugal. E acresce, repetindo-me, que o Tratado Orçamental e o Eurogrupo não são instituições da União Europeia. E, repetindo-me, de novo, o Orçamento aprovado vai ser tão ficcional como a Branca de Neve. Como já aconteceu aos orçamentos anteriores, o Orçamento real é o Orçamento resultante das cativações dentro do Orçamento de fachada.

Nestas matérias está-se como a “voz clamando no deserto”. O que se ouve de imediato como resposta é uma variante do discurso do ocupado que interioriza o discurso do ocupante, uma soma de argumentos ad terrorem, de que quem contesta o oito quer o 80, ou do desabar cataclísmico de tudo, à mais pequena contestação do estado de coisas. É um discurso de quem tem medo de levantar um dedo que seja, e que começa por se apresentar como “realista” e contrariado pela ocupação, para acabar por ser entusiástico com o ocupante.

Na história, é um discurso conhecido e, sem querer ser excessivo, é muito parecido com o discurso dos franceses depois da derrota de 1940, em que começaram por pregar uma atitude de “realismo”, face à ocupação alemã, dizendo que ser patriota era apoiar Pétain, que obteve a “pacificação” da França derrotada. Diziam que a soberania muito limitada que os alemães permitiram durante algum tempo garantia a continuidade da França no fim da guerra, claro, se ela fosse vencida pelos alemães. Terminou tudo como se sabe, com a “colaboração”, com o fim da zona “livre”, com os italianos a ocuparem a Riviera e os alemães a França toda, e a guerra civil com todas as suas violências. A excepção solitária foi De Gaulle e alguns dos seus companheiros que, esses sim, salvaram a França.

A discussão enganadora sobre o Orçamento e as migalhas de decisão que o Governo e o Parlamento ainda têm retiram conteúdo à política em democracia, ou seja, tornam-na menos democrática. O PSD, o CDS e PS são partidos do Tratado Orçamental, o BE e o PCP por razão da “geringonça” não têm qualquer autonomia nesta matéria. À mais pequena crise de fora, vai desabar tudo. E depois queixem-se do populismo.»
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