29.11.18

Realpolitik para distraídos



«Em 1710, Leibniz inventou a palavra teodiceia a partir de dois termos gregos (significando "justiça de Deus", numa tradução direta). Durante décadas, gastaram-se muitas sinapses a tentar conciliar duas realidades aparentemente contraditórias, contidas na pergunta: "Como é possível a existência de mal num mundo que foi criado por um Deus não só infinitamente poderoso, mas infinitamente bom?" A teodiceia produziu uma espécie de "economia do mal", em que um crime ou desgraça determinados e reais apareciam "justificados" pela crença de terem evitado um mal maior. Essa metafísica do mal desapareceu do pensamento europeu com o choque do terramoto de Lisboa de 1755, contudo, permito-me um exercício análogo ao da teodiceia, depois de escutar as declarações de Trump sobre o relatório da CIA, que confirma o príncipe saudita Salman como o responsável pelo assassínio do jornalista Jamal Khashoggi.

Exibindo um "mal moral" (ainda citando Leibniz) despudorado, Trump afirmou que as vantagens económicas e estratégicas de uma boa relação com Riade pesam muitíssimo mais do que a vida de Khashoggi. Já uns dias antes, presente no desastre incendiário da Califórnia, Trump continuou a negar a existência de alterações climáticas, confundindo factos com convicções, varrendo o melhor da investigação das Ciências da Terra das últimas décadas com o punho da sua crença irracional. Sobre a malignidade da conduta de Trump, parece não restar dúvida. Mas haverá algum mal maior a evitar que possa justificar a sua existência?

Será que o atual presidente norte-americano poderá servir como uma caricatura com utilidade pedagógica? Será que a maldade crua, o desprezo boçal pelos valores da justiça e da dignidade humana, tanto para com os vivos como para com os vindouros, exibidos incessantemente por Trump podem servir para ensinar, até aos mais distraídos, as linhas com que se cose a política em 2018?

Na verdade, a conduta de Trump difere mais da dos líderes democráticos europeus na carroceria do que na motorização, para usar uma metáfora tão rude como o tema. Nenhum estadista europeu, incluindo Macron, parece inclinado a perder um euro nas exportações de armamento para Riade por causa do esquartejamento de Khashoggi. Trump está quase sozinho na negação das alterações climáticas, mas a fé dos europeus que nela acreditam não parece ser forte a ponto de colocarem a defesa da saúde pública e do clima acima do interesse material da indústria automóvel, como se viu no enredado escândalo das emissões revelado em 2015. O realismo político hoje já não está propriamente ao serviço da razão de Estado, mas sim dos imperativos de rentabilidade ininterrupta de uma economia global, dominada por uma plutocracia nómada que manda sem rebuço nos governos nacionais e não hesita em manipular e mentir. Veja-se como a UE foi "vendida" aos cidadãos em nome do "modelo social europeu" e da "convergência económico-social" dos Estados membros. Mentiras nuas, face à desigualdade crescente e à precarização generalizada do trabalho assalariado. O motor da UE hoje é o seu tratado orçamental, um instrumento implacável ao serviço da reprodução do capital, desse "moinho que se tritura a si mesmo", na expressão notável de Novalis. Mas o mal não tem de ter a última palavra. Em 1940, Churchill poderia ter aceitado a generosa proposta de paz de Hitler. Preferiu o risco e o preço de sangue do valor da dignidade. A única via para devolver grandeza e redenção à política.»

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