28.12.18

2019: Ave, Europa, morituri te salutant



«Consta que era assim que os gladiadores saudavam os Césares, em Roma, na arena do Coliseu, inspirados num episódio de batalha naval encenada pelo bizarro imperador Cláudio: “Ave, César, os que vão morrer te saúdam.”

O ano que vem vai ser tempo de morte para muita gente. Nenhum de nós sabe quando chega a nossa vez. Mas sabemos cada vez melhor que para muitos a Senhora da Foice passa e colhe muito antes do momento esperado ou devido. Por doença precoce quantas vezes evitável, catástrofe natural ou provocada por erro humano, ou conflito mortal para quem fica e para quem foge. Das invasões, das bombas, dos snipers ou da fome e da miséria, as pragas de mão humana que continuam a assolar o mundo de forma tão sinistra quanto desigual. A esperança de vida à nascença e a sua indecente variação mundial é prova evidente do elemento sorte que preside à nossa chegada ao círculo dos vivos. Poucas variáveis predizem melhor as nossas futuras oportunidades do que o sítio onde nascemos.

Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, reunida em Paris, com os votos favoráveis de larga maioria dos então membros (48 em 58), nenhum voto contra e a abstenção de oito Estados (no essencial, os do “bloco comunista”, que entendiam que o documento não ia suficientemente longe), havendo ainda dois que não votaram (Iémen e Honduras).

Comovente na sua generosidade, radical na sua ambição, desafiante na sua completude, visionário no seu alcance, o texto da Declaração Universal promete, entre outras coisas, refúgio aos perseguidos e um mínimo decente de vida a todas as pessoas, como direitos que pertencem a todos os seres humanos apenas pelo facto de o serem.

“Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países”, reza o Art. 14.º 1, sobre refugiados. De forma realmente universal, o Art. 25.º 1 proclama que “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade”.


Mas o que verificamos é que quando os que se vêem obrigados a deixar para trás a sua casa, vida, família, amigos porque as suas convicções ou hábitos e formas de vida são perseguidas, ou porque a sua possibilidade de subsistência e dos seus é reduzida ou nula, alguns dos países mais afortunados do mundo viram-lhes as costas, erguem muros, guardas e políticas para estancar a “invasão”, muitas vezes esquecendo a sua própria origem ou o passado recente que os colocou em situação semelhante. Até o modesto Pacto das Migrações, assinado há dias em Marraquexe, já foi alvo de manifestações hostis de habitantes em solo europeu — em Bruxelas, o seu centro político mais evidente, geograficamente falando. Alguns países bem mais pobres e frágeis mostram bem maior generosidade em acolher quem foge da guerra, da insegurança e da miséria que ela sempre traz consigo.

Quantos morrerão antes do tempo, neste novo ano, atravessando o mar, o deserto, as montanhas, os muros, os arames e os guardas ou as políticas nacionais ou europeias que os separam do futuro que não chegarão a ter?

Quantos portos se negarão a deixar os navios atracar, quantos governos lhes dirão que batam a outra porta, quantos de “nós, europeus” (ainda não consegui entender bem o que isso seja), lhes fecharemos as nossas?

Já que estamos em pleno Natal, lembremos que Jesus Cristo era refugiado, tendo fugido de morte certa para país estrangeiro pouco depois de nascer. Como eram ou são tantas personagens dos nossos passados históricos ou imaginários, tantos artistas e gente de ciência que regularmente celebramos. Os países mais desenvolvidos queixam-se de baixa natalidade e falta de população e mão-de-obra, olham apreensivos para o crescimento acelerado da China, mas não aceitam a riqueza material e espiritual, civilizacional que uma maior abertura à imigração lhes proporcionaria. Os nacionalismos populistas e os aproveitamentos dos baixos instintos do egoísmo humano muito têm feito para demonizar os estrangeiros, os imigrantes, os deserdados da Terra que buscam um futuro decente em países que, em muitos casos, enriqueceram à custa do subdesenvolvimento dos seus, feitos colónias, “ultramar”, territórios e populações submetidos à mais desumana e descarada exploração, quantas vezes a ferro e fogo. Legalmente, a escravatura e seus tráficos são história recente. Os caricatos “códigos indígenas” e as práticas coloniais de dominação e saque, ainda mais.

Vivemos no século em que a tecnologia avançada num país democrático europeu é capaz de produzir a maravilhosa nova Biblioteca Pública de Helsínquia, um “navio” de três andares equipado com os mais sofisticados instrumentos pedagógicos e comunicacionais, como relatado, por exemplo, no artigo de Thomas Rogers no New York Times de dia 6 de Dezembro passado. Não é estranho que a Europa da União não consiga encontrar alternativa decente ao vergonhoso acordo com a Turquia sobre como “despachar” os indesejados migrantes em busca de refúgio e de uma vida viável?

Entre a fragmentação interna e a intolerância que vai tolerando ou até fomentando sobre o exterior migrante, a União Europeia não parece sequer capaz de responder como Cláudio terá feito, no relato de Suetónio, aos condenados que decidiu magnanimamente poupar: “Vão morrer? Talvez não.” O poder de graça ou misericórdia é o outro lado do poder absoluto, despótico, tirânico. Quando a União Europeia ou os Estados Unidos deixam morrer às suas portas os novos membros do exército de reserva industrial do capitalismo global, o seu gesto de indiferença cruel em tudo se assemelha ao polegar caprichoso do Imperador no lugar de honra do circo do Coliseu de Roma.»

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