«O aumento dos impostos sobre combustíveis tem sido apresentado como inevitabilidade política perante os desafios ambientais que a França tem pela frente. Depois de sucessivos aumentos, os franceses terão, em 2021, a mais alta percentagem de imposto sobre o gasóleo da Europa, depois do Reino Unido e da Itália – 60% (Portugal estava, em fevereiro, em 11º, abaixo da média europeia, com 56%). Em França, o gasóleo corresponde, ao contrário do que acontece na maioria dos países europeus, a uma larguíssima maioria dos carros em circulação. E o seu preço aumentou 23% em apenas um ano. Não é difícil imaginar o efeito económico que este súbito aumento teve nas carteiras dos cidadãos. Todos os dias, 17 milhões de franceses deslocam-se para fora das suas localidades para trabalhar e, destes, 80% usam o seu veículo pessoal. As principais vítimas deste aumento não são os mais privilegiados. A indignação popular não vem do nada. Nem o apoio popular aos “coletes amarelos” que era, a 17 de novembro, de 70%.
Não preciso de dizer que considero a transição energética a primeira de todas as prioridades. Nenhuma outra faz sentido sem garantirmos a sobrevivência do planeta. E temos de estar disponíveis para todos os sacrifícios em nome deste objetivo. O cerco ao gasóleo acontece em toda a Europa e é inevitável. Mas para mobilizar todos para este sacrifício exige-se, do poder político, coerência, equidade e rigor. É por ser fundamental que tem de ganhar as pessoas e não pode ser feita de forma desigual. Ou o resultado será a eleição daqueles para quem as alterações climáticas são um mito urbano.
Aquilo a que se assiste em França é, como de costume em Emmanuel Macron, uma fraude política. O pouco empenho do Governo na agenda ambientalista levou, aliás, à demissão do ministro do Ambiente, o ecologista Nicolas Hulot, por um “acumular de desapontamentos” perante a evidência de que esta não era uma área prioritária. Na realidade, Macron nunca fez qualquer combate ao diesel, tem dado toda a proteção fiscal à petrolífera Total, não investiu no transporte coletivo, espera suprimir 11 mil quilómetros de linha férrea, não tem qualquer plano para travar a expulsão dos mais pobres para cada vez mais longe dos centros das cidades. A ideia de que a política ambiental se pode resumir à punição fiscal dos cidadãos, sem que seja acompanhada por qualquer outra política pública urbana ou de transportes, é a repetição da desigualdade de sempre: pôr os mais pobres a pagar, sozinhos, o esforço de salvar o planeta.
Macron acredita que as nações se mudam à paulada. O seu autoritarismo e a sua agenda neoliberal têm-lhe garantido uma impopularidade arrasadora, que conseguiu o feito de ultrapassar a de François Hollande. Uma impopularidade que se compreende quando comparamos um aumento de 23% para o gasóleo com o fim do imposto sobre as fortunas e a taxa fixa sobre os rendimentos do capital, que garantiram um aumento considerável do poder de compra dos 1% mais ricos no mesmíssimo momento em que os 20% mais pobres perdem poder de compra e veem serviços públicos e apoios sociais reduzirem-se. É neste cenário que as manifestações dos “coletes amarelos” devem ser observadas. Há uma forte convicção, baseada em factos sólidos, de que o aumento de impostos sobre os combustíveis tem razões estritamente fiscais. E que se enquadram numa aviltante desigualdade fiscal.
O movimento dos “coletes amarelos” (assim denominado por os manifestantes usarem os coletes de emergência dos carros) nasceu inorgânico, nas redes sociais. Apanhou os sindicatos e os partidos desprevenidos. A simpatia dos Republicanos (direita) e do PSF (centro-esquerda) foi discreta, a da França Insubmissa (esquerda) e de movimentos da esquerda radical mais clara. As centrais sindicais não apoiaram, mas alguns sindicatos do sector dos transportes furaram este bloqueio político. O Rassemblement National, de Marine Le Pen, deu apoio explícito.
Totalmente desenquadrado, o movimento tornou-se violento, coisa que impressiona mais no estrangeiro do que os franceses. Mas é um movimento que capitaliza um descontentamento mais geral com o aumento do custo de vida. E a ele juntam-se muitos descontentes que os sindicatos e os partidos não conseguem organizar. O movimento tem uma força especial nas pequenas cidades e vilas da província, onde se acumula o descontentamento pelo desinvestimento público e pela crise da desindustrialização. Quem se manifesta é a “France Péripherique” de que fala Christophe Guilluy.
A estratégia de Emmanuel Macron é a de entregar toda a contestação ao seu governo à extrema-direita. O trabalho não é difícil. Sendo a extrema-direita a força de oposição com maior implantação popular – Mélenchon está fragilizado depois de alguns escândalos –, terá sempre grande presença em movimentos inorgânicos de massas. Mas o forte apoio popular, da esquerda à direita, deixa claro que a tentativa de circunscrever a contestação a um movimento de extrema-direita – narrativa apoiada por alguns sindicatos irritados com a perda de protagonismo – não é inocente. Nem serve apenas para tentar circunscrever o impacto da contestação. Macron quer queimar todo o espaço democrático fora do seu próprio espaço de influência, entregando a oposição a Marine Le Pen. Tê-la como única adversária publicamente reconhecida é a forma de, apesar da impopularidade, manter todos os democratas como reféns. Sem ter de lhes fazer qualquer cedência. Ou ele ou Le Pen. É a única estratégia que tem.
Esta estratégia pode servir Macron, a curto-prazo, mas é um suicídio para a democracia francesa. Depois de esvaziar os socialistas, o presidente do centro autoritário quer esvaziar todo o campo democrático como alternativa a Le Pen. Se o conseguir fazer não demorará muito para que, cansada do seu governo, a maioria dos franceses acabe mesmo por escolher o que sobra: Marine Le Pen. Faz por isso muito bem Jean-Luc Mélenchon e entrar no terreiro onde Macron queria Le Pen sozinha. Cada dia em que Macron consegue dar todo o povo a Le Pen é um dia mais próximo do colapso da democracia francesa. Porque este homem é um falsário perigoso. Tudo o que tem deixado, à esquerda, à direita, no campo democrático e até na agenda ambiental, são quilómetros de terra queimada.»
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