«O PÚBLICO deu conta da notícia do Expresso sobre a retirada de alguns versos do poema Ode Triunfal, de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, de um livro escolar da Porto Editora. Estão em causa versos com notório conteúdo sexual.
O que me importa na notícia, para além de lamentar a mutilação de qualquer peça literária, em qualquer circunstância, é ainda a pequenez de espírito de algumas mentes que, por dever de ofício, deveriam revelar uma muito maior largueza de vistas.
Trata-se, contudo, de um mero sintoma de uma questão bem mais profunda e que permanece em Portugal à entrada da década de 20 do séc. XXI: o modo como se encara o sexo. E isto temporalmente próximo de uma reportagem em que se dava nota de “terapias de conversão” de homossexuais, alegadamente levadas a cabo por uma psicóloga que insistia em se afirmar católica e com o beneplácito de alguns sacerdotes. Que Freud e outros autores da sua escola de pensamento neguem a homossexualidade qua tale, é um facto científico já desmontado por quem estuda a área.
Somos, na verdade, uma nação que ainda não percebeu que a sexualidade humana é uma mera componente da nossa personalidade e que, sendo por certo de grande relevo, não nos define na totalidade, nem dita o que mais interessa na relação que estabelecemos uns com os outros. Significa isto que, numa sociedade em que o sexo se acha tão sobrevalorizado, dizer-se hetero, gay, bi, lésbica, intersexo, trans, ou qualquer outra coisa, é apenas e tão-só a assumpção, para o/a próprio/a de um rótulo que o/a ajuda a sentir-se enquadrado/a.
E o ser humano necessita, para se sentir mais seguro, de etiquetas. Sou do FCP, sou bancário, sou de esquerda, gosto de francesinhas, aprecio cinema de Hollywood. Uma espécie de cartão de cidadão que nos identifica quase sempre mais perante os outros que perante nós. E isto porque nós somos isso tudo e o seu contrário, dependendo dos dias, dos minutos e dos segundos.
Não se define o humano, por natureza indefinível, e o convite que os tempos actuais nos lançam é o de não insistirmos em definir as pessoas pelo seu sexo, orientação política, ideológica, pertença a um clube. Somos bem mais que isso. Qualquer caracterização serve apenas e tão-só para saciarmos a vontade humana de defesa do outro: ele/ela está já etiquetado/a e, por isso, dentro das minhas categoriais cognitivo-comportamentais, já sei como lidar com ele/ela.
Simplesmente, a auto e heteroetiquetagem podem provocar dores internas imensas. E dissabores profissionais. Pessoalmente, quando falo com alguém, por instinto, parto do princípio que essa pessoa é, no mínimo, dotada da mesma massa cinzenta que eu. É uma característica que me tem sido de grande utilidade, tantas são as vezes que vejo um engravatado fazer figuras tristes ante um suposto esfarrapado de cabelo desgrenhado e que lhe dá dez a zero em inteligência, argumentação e cultura.
Em Portugal, o hábito ainda faz, em grande medida, o monge. E se o hábito não corresponde à etiqueta, então não será grande coisa. Entre um advogado enfatado e um outro de jeans e t-shirt, p. ex., sem que se saiba nada sobre qualquer deles, é humano a maioria decidir-se pelo da gravata. Que pode bem ser o menos competente. Avaliamos ainda muito o conteúdo pelo recipiente, esquecendo que os melhores conteúdos se estão a marimbar para a suposta beleza onde se acham contidas.
A luta fratricida no PSD é mais um exemplo disto. Agora sabemos melhor quem são “eles” e “nós” e é caricato o coro de virgens ofendidas com a luta pelo poder de Montenegro e sua entourage. O que é um partido político senão uma forma mais ou menos organizada de chegar e conservar o poder, num sistema político que, imperfeito, é melhor que todos os demais juntos? Se é bonito, eticamente falando? Talvez não, mas também não é mais bonito ser frontal que andar diariamente a fustigar Rio pelas costas? E aí virá uma clarificação, pelo que voltamos à necessidade do preto e branco, do maniqueísmo que nos tem seguros (não é nenhuma piada ao lugar paralelo que se quer estabelecer entre a luta de galos Seguro/Costa). Tudo normal. Só fumaça. Apenas é notícia porque urge preencher o espaço.
Com o que se volta à absoluta necessidade que tantos têm de pensar por nós. “Estes versos podem chocar e é melhor tirar para não causar embaraços aos professores”. Mentes pequeninas. Nada deve ser truncado. E a reflexão que esses precisos versos provocaria em espaço de aula? E os professores não necessitam de ser provocados, certamente detendo estratégias que lhes permitissem explicar o agora truncado na economia do poema e da lírica pessoana? Mas não. Há gente que gosta de pensar por nós. E vai daí – mesmo que sem maldade –, quer-nos poupar a coisas “desagradáveis”. E o que é a vida se não um constante diálogo com sentimentos de dor e prazer, como diriam Bentham e companhia?»
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