«De cada vez que se apresenta uma lei no Parlamento, há algumas pré-condições que têm de ser verificadas para que ela possa ser debatida. Viola algum artigo da Constituição? Se sim, vai para trás. A proposta implica despesa? Se sim, só poderá entrar em vigor com o Orçamento do ano seguinte e tem de dizê-lo explicitamente – é a chamada “norma travão”. Da mesma forma, quando um Orçamento do Estado é apresentado, os Governos indicam qual preveem que seja o crescimento da economia, a receita e a despesa fiscal, os indicadores de emprego ou qual a meta de défice que se propõem atingir. Esse prognóstico condiciona todo o debate público que se segue e a avaliação que se faz sobre a proposta. Favorece o crescimento ou não? Implica maior ou menor despesa? Aumenta ou diminui o défice? As próprias instituições internacionais pronunciam-se sobre algumas dessas metas, muitas vezes violando flagrantemente a soberania democrática dos países e o seu direito a tomarem as suas opções de política económica.
Há uns anos, a Rede Europeia Anti-Pobreza/EAPN Portugal lançou um desafio que, sendo uma ideia simples, tem a força subversiva do que é sensato e provocador ao mesmo tempo: e se, antes de se discutir qualquer lei, se avaliasse não apenas o seu impacto no Orçamento, mas também o seu impacto sobre a pobreza? Ou seja, quando se discute o aumento do número de alunos por turma ou o encerramento de um centro de saúde, quando se debate o valor do salário mínimo ou as regras do subsídio de desemprego, quando se apresenta uma nova lei das rendas ou uma política sobre os passes de transporte, quando se discute o valor das pensões ou as mudanças no abono de família, qual é o efeito previsível que essa proposta tem na produção, manutenção ou agravamento da pobreza e da exclusão social?
A proposta é sensata porque parte de um tema e remete para um objetivo que, supostamente, merece consenso nacional: o combate à pobreza. Em 2008, a Assembleia da República declarou solenemente, por unanimidade, que “a pobreza conduz à violação dos direitos humanos” e comprometeu-se a desenvolver políticas para erradicá-la. O que se seguiu é conhecido: depois de algum progresso até 2010, o período que se seguiu, particularmente até 2013/2014, foi o do maior agravamento da pobreza que Portugal conheceu nas últimas décadas.
É por isso que, além de uma inteligente provocação, a proposta é também subversiva: ela pretende obrigar a que todos os que têm responsabilidade assumam a consequência das suas propostas. De todas. Ou seja: que se assuma que o combate à pobreza não é apenas uma questão de “apoio aos pobres” nem tampouco de políticas sociais, mas sim uma questão de distribuição primária de rendimento, de políticas orçamentais, económicas, de políticas de emprego, de educação, de saúde ou de habitação. Por exemplo: há quem tenha achado que era importante liberalizar o mercado do arrendamento para “dinamizar a economia” – mas quantos novos pobres resultaram dessa medida? Houve quem decidisse congelar ou cortar as pensões em nome da “diminuição da despesa pública” – mas quantas pessoas foram atiradas para a pobreza à conta disso? Há quem entenda que a vantagem competitiva de Portugal para atrair investimento estrangeiro é comprimir os custos do trabalho (seja no salário, seja no trabalho suplementar ou em dias de férias) – mas além dos efeitos nas “exportações”, que relação é que isso tem com o facto de haver em Portugal 10% de trabalhadores na pobreza, mesmo com salário? Se no campo das declarações de princípios parecemos estar de acordo, por que razão a pobreza não acaba? A explicação não se encontra em comportamentos individuais. Encontra-se no modo como a sociedade e o sistema económico estão estruturados, nas desigualdades que promovem, nos mecanismos da sua reprodução – e nas escolhas que fazemos a todos os níveis.
Em Portugal, mais de 1 milhão e 700 mil pessoas continuam na pobreza. Uma parte significativa são crianças e jovens. Temos pois um imenso caminho a percorrer para erradicar o fenómeno. A sugestão da Rede Europeia (que o Bloco transformou num projeto de lei entregue na Assembleia, o que suscitou já reações do Governo e do Presidente da República) tem o enorme mérito de nos obrigar a pensar no assunto permanentemente, em cada medida que é proposta e a assumir as consequências do que defendemos. Se a pobreza é uma violação dos direitos humanos, o que a tem agravado? E que escolhas concretas a combatem?»
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