«Uma “primavera europeia” contra “o eixo franco-alemão” dominante. Um “renascimento dos valores europeus” contra os burocratas. Uma rede pan-europeia de partidos nacionalistas. Estas não são ideias novas, são enunciadas pelo menos desde que o Governo italiano de coligação entre a Liga, partido de extrema-direita, e o Movimento Cinco Estrelas (M5E), populista, foi formado, em junho do ano passado. Mas o ministro do Interior, Matteo Salvini, repete-as com cada vez maior ênfase à medida que se aproximam as eleições de 26 de maio para o Parlamento Europeu.
Recentemente, a agência France-Presse noticiou que Salvini, que também comanda a Liga, está a tentar organizar uma frente europeia de extrema-direita. Em janeiro, num encontro com o seu homólogo polaco, falava da convergência de agendas com o partido Lei e Justiça (PiS), no poder em Varsóvia, em temas como a anti-imigração, o anti-islamismo e o euroceticismo. Foi então que falou numa “primavera”, que poderia ser desencadeada por Itália e Polónia, para libertar o continente dos burocratas. Em outubro, ao lado da líder da extrema-direita francesa, Marine Le Pen, Salvini disse que as eleições europeias inaugurariam uma nova era, caracterizada pela restauração de valores como o orgulho e a dignidade dos trabalhadores comuns.
Mas será mesmo possível criar uma frente europeia de partidos nacionalistas e extremistas para as eleições de maio? O investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) Marco Lisi relativiza: “Salvini tenta ocupar o espaço da direita tradicional, que está em crise em vários países da Europa. Os partidos mais à direita, que já atraem um certo tipo de eleitorado, tentam agora expandir-se e atrair um eleitorado mais moderado, polarizando várias questões, nomeadamente a imigração e a identidade.”
As eleições “abrem uma janela de oportunidade para coordenar essa vontade a nível europeu, com os partidos extremistas a fazerem parceiros e a conquistarem uma maior legitimidade”, comenta o investigador do IPRI ao Expresso. Também isso não é exatamente novo. “As eleições europeias são sempre uma oportunidade para as forças antissistema e extremistas. São eleições em que as forças de protesto conseguem melhores resultados e que normalmente penalizam as mais moderadas”, recorda.
“Os partidos extremistas têm um discurso comum sobre imigração e soberania contra os poderes europeus mas têm opiniões radicalmente diferentes sobre tudo o resto”, sublinha, por sua vez, Simone Tulumello, investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa. Sendo Itália um país com uma grande dívida, sempre explorou uma maior flexibilidade nos Orçamentos do Estado e a possibilidade de ter défices maiores. Ora, “os maiores inimigos dessa possibilidade são os países do Grupo de Visegrado”, com destaque para a Polónia e para a Hungria, diz ao Expresso.
A própria questão dos imigrantes e a sua distribuição pelos países europeus também abre profundas brechas na hipótese de um entendimento alargado. “Os países do leste são aqueles que nem sequer aceitam um número mínimo dos refugiados que chegam às costas italianas”, junta Tulumello. Por outro lado, continua, a Polónia e a Hungria estão entre os países que mais beneficiaram, nos últimos anos, dos fundos europeus, pelo que até “podem ter um discurso absolutamente contra a Europa mas querem continuar a receber os benefícios”.
“Partidos extremistas são muito mais pragmáticos e flexíveis”
Ambos os investigadores concordam que a retórica de Salvini faz parte de uma estratégia de campanha eleitoral com potenciais ganhos internos, divergindo apenas na dimensão desses proveitos. “Se a Liga, como preveem as sondagens, se mantiver como o maior partido, isso dá-lhe uma grande força para romper com o M5E e ir a eleições rapidamente”, prognostica Marco Lisi. O investigador do IPRI deteta “cada vez mais incompatibilidades” no seio da coligação, como “era previsível desde o começo”.
Salvini poderá estar preocupado com a hipótese de não confirmar as sondagens que dão à Liga intenções de voto na ordem dos 30%. “Se o partido tiver essa votação, é possível que tente forçar a mão, criando uma maioria diferente no Parlamento e ‘libertando-se’ do M5E ou até fazendo cair o Governo. Mas não tenho a certeza de que isso venha a acontecer”, hesita Simone Tulumello. O investigador do ICS reconhece, ainda assim, que “a estratégia pode ser criar a imagem de uma direita europeia consolidada para tentar manter as expectativas altas”.
“Para chegarem ao poder, os partidos extremistas são muito mais pragmáticos e flexíveis do que as forças políticas moderadas, e isso é um ponto a favor deles”, reconhece Marco Lisi. Por isso é que “a política de alianças dos partidos tradicionais é fundamental”, algo que não aconteceu em Itália nas últimas eleições legislativas. “As forças de esquerda foram incapazes de fazer coligações”, o que acabou por resultar na atual solução governativa.
O investigador do IPRI reforça a tese da competição crescente entre os dois parceiros de coligação. À semelhança de Salvini, também o vice-primeiro-ministro Luigi Di Maio, líder do M5E, se tem desdobrado em contactos europeus, explorando afinidades políticas com partidos e movimentos na Polónia, Croácia e Finlândia, entre outros. Na semana passada, o seu encontro com figuras destacadas do movimento dos “coletes amarelos” levou mesmo a um incidente diplomático grave com Paris, com o Ministério francês dos Negócios Estrangeiros a chamar o seu embaixador em Roma. Em comunicado, o Quai d’Orsay falou em “declarações ultrajantes”, “ingerência” e “ataques infundados” como já não se via desde o fim da II Guerra Mundial.
“Com a chegada ao poder, surgiram duas alas no M5E: uma institucional – mais moderada, mais disponível para compromissos – e uma outra mais radical”, explica Lisi. “Em Itália, parece que o chefe de Governo é Salvini e que Di Maio e [o primeiro-ministro] Giuseppe Conte são vices dele. E isso também se reflete nas sondagens, com a Liga a subir e o M5E a descer ligeiramente”, diz. Este dado ajuda a explicar o endurecimento da retórica de Di Maio, que “está a tentar recuperar a alma de protesto que já fazia parte da sua identidade mas que perdeu com a ascensão ao poder”, refere o investigador do IPRI.
Mesmo que a tal frente de extrema-direita não se forme na Europa a tempo das eleições, está quase tudo pronto para abrir a primeira universidade que irá formar “a nova classe dirigente da extrema-direita”. As palavras são do presidente do instituto que administrará a nova estrutura e cujo epicentro fica a 100 quilómetros de Roma, na Abadia de Trisulti.
Segundo o jornal “La Stampa”, a abadia, que deverá transformar-se em breve em academia, visa “transmitir o pensamento de Steve Bannon às próximas gerações” e “formar os futuros Matteo Salvini e Viktor Orbán [primeiro-ministro da Hungria]”. O mesmo Steve Bannon que foi estratega da campanha do Presidente dos EUA, Donald Trump, e que se instalou em Bruxelas para aglutinar as extremas-direitas da União Europeia (UE). A confirmar-se, esta será a primeira universidade populista de uma rede a alargar-se pelo continente. Ainda este ano, poderá abrir uma sucursal em Roma.
A culpa da Europa
E que responsabilidades tem a Europa na emergência de forças políticas que recuperam alguns dos piores fantasmas do passado? “O aumento das desigualdades e a forma como a crise foi gerida na chamada década da austeridade criaram o húmus onde depois é mais fácil ter um discurso xenófobo, racista e soberanista”, afirma Tulumello. E deixa a crítica: “A UE nunca pôs em questão o seu modelo dominante de resposta à crise, de desenvolvimento económico. Não há um único país na Europa que tenha um pensamento racional sobre imigração. Se houvesse uma estratégia europeia, cairia toda a retórica da extrema-direita.”
Lisi concorda que as circunstâncias económicas, mas também as políticas de defesa e de segurança, “tornaram mais visíveis as falhas europeias”. “Não se vê uma UE capaz de dar resposta a alguns problemas da sociedade no curto e médio prazo. Não parece haver uma resposta adequada às frustrações da maioria da população. Não há políticas de coesão que possam ultrapassar as assimetrias no espaço comunitário”, elenca.
Quanto àquela que deveria ser a resposta das instituições europeias ao avanço dos movimentos extremistas, Tulumello é categórico: “Não há uma resposta porque não me parece que haja uma Europa. Há uma Europa noutros campos que avança silenciosa mas falta um sistema real de democracia e de política europeias.”»
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