«De repente, fez-se luz. Percebeu-se o que pretendia António Costa com a mudança radical e repentina na proposta do Governo para a Lei de Bases da Saúde, que tinha resultado de uma negociação em que ele próprio participara. Havia pressões e Costa aproveitou a oportunidade. Precisava de criar o ambiente político para a campanha que tem na cabeça. Ele quer o melhor de dois mundos. Depois de ter as vantagens do apoio da esquerda, quer as vantagens de não o ter. Depois de uma maioria sem maioria, quer recuperar o voto útil que morreu quando mostrou que era possível governar com os votos do BE e do PCP sem ficar em primeiro. Um bom final de mandato da ‘geringonça’ impedia a dramatização. Com o cenário montado, era preciso fazer esquecer a lealdade por vezes dolorosa com que os “irresponsáveis” do Bloco e do PCP aprovaram quatro orçamentos que foram além das exigências europeias. E para a dinamitação da ‘geringonça’ teve de remover Pedro Nuno Santos do lugar de pivô.
O segundo ato da farsa foi-lhe oferecido por Rui Rio. Como há limites para o contorcionismo, António Costa sabia que BE e PCP não podiam mudar a sua posição de sempre quanto à reposição da carreira dos professores. Tanto o sabia que aceitou, em dois orçamentos sucessivos, a norma que estipulava que apenas o tempo e o modo da reposição dependeriam da disponibilidade orçamental. Saiu-lhe a sorte grande com a cambalhota da direita, que Rio e Cristas vão pagar cara. E veio o terceiro ato: a ameaça de demissão que, a poucos meses das eleições, é apenas um ato de campanha eleitoral. E com ela, uma aldrabice descarada: que a decisão do Parlamento significa um aumento de 800 milhões, incomportável para o Governo. À falta de um PEC IV para repetir o choradinho socrático, optou-se pela mentira. O que foi decidido não tem prazos nem calendário. O único impacto é a contagem dos dois anos, nove meses e 18 dias, até 2020, que o próprio Governo sempre mostrou disponibilidade para pagar. O que mudou foi a oportunidade de Costa arrancar com a sua campanha eleitoral.
Apesar de BE e PCP o terem deixado governar quase sem sobressaltos estes quatro anos, o velho PS quer rédea solta. Só que António Costa não vai ter maio¬ria absoluta. Vai governar com quem depois deste truque de última hora a pensar, como é seu hábito, apenas nos próximos meses? Esta é a pergunta dramática que nos vai fazer na campanha para nos sacar o voto. Em nome de uma ambição pessoal demasiado pequena para as circunstâncias, Costa montou uma encenação que atira por terra uma mudança histórica na política portuguesa, que a esquerda europeia via como exemplo. Este seria o único legado decente de uma geração falhada de políticos à esquerda. Porque, infelizmente, tudo em António Costa é tática, nada em António Costa é convicção. Isso é coisa que toda a gente de dentro do PS me avisa há anos. Foi a ‘geringonça’ que salvou o PS do destino dos restantes partidos socialistas europeus. Terá de ser uma nova geração de políticos a impedir que o calculismo continue a deitar tudo a perder. Ao apostar todas as fichas num fim triste para a ‘geringonça’, Costa semeia a desilusão e o desalento nos que apoiaram esta solução política. Mesmo que consiga vitórias circunstanciais, a derrota é brutal. E é por isso que, esta semana, António Costa se juntou à tralha do passado.»
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