«Uma lei extraordinária! A Lei de Bases de 90 situa o SNS numa rede concorrencial para o financiamento público, em igualdade de circunstâncias com o sector social e privado! Não reconhece como principal responsabilidade do Estado o desenvolvimento de um SNS de qualidade, mas explicita a possibilidade do SNS proporcionar aos seus concorrentes a extração de mais-valias financeiras do seu orçamento, entregando-lhes a "gestão" das suas unidades prestadoras (sob a designação simpática de "parcerias"). E, promove ainda a "facilitação da mobilidade do pessoal do SNS" para a concorrência e reserva para esta "quotas de internamento em cada região".
Entre Novembro de 2002 e Abril de 2003, o Governo da República concretiza a filosofia da Lei de Bases através de três peças legislativas dedicadas à gestão privada dos hospitais e centros de saúde do SNS. Década e meia depois, acentua-se a ortodoxia - o ministro de saúde de então, agora coordenador para a saúde do maior partido da oposição, em conferência de imprensa (13 de Setembro de 2018), declarou:
"Trata-se de generalizar as PPP... queremos que progressivamente mais hospitais sejam contratualizados com gestão privada... continuará a haver gestão pública maioritária mas cada vez mais a gestão passará para as mãos dos privados, incluindo os cuidados primários ..."
Do significado. Alguns meses antes (13 Janeiro 2018) o mesmo dirigente, em entrevista a um semanário, a propósito da proposta Arnaut/Semedo, explica as opções que representa: "O Estado tem que prover um bem público, não tem que o produzir … pela organização do Estado, não há gestão de recursos humanos que incentive as pessoas a fazerem melhor". Isto, em Portugal, já começa a não ser verdade. Pretendem substituir o SNS pelo financiamento público da prestação privada. Não querem o SNS. Há que assumi-lo.
Uma Lei de Bases "aberta"? Argumenta-se a favor da necessidade de preservar uma Lei "aberta", que permita a qualquer governo ir pelo caminho que lhe pareça melhor, mesmo que isso signifique o progressivo desmantelamento do SNS. Pois, a fronteira é mesmo aqui: entre quem quer esse tipo de "abertura" e os seus efeitos óbvios, e quem aposta numa Lei de Bases dedicada ao desenvolvimento do SNS, com apreço pelas contribuições do social e do privado.
Há que situar os detalhes neste contexto significativo. A ilusão do "escolham onde querem ir e nós pagamos" é o cavalo de Troia da privatização do SNS. Não resiste a qualquer análise séria sobre as circunstâncias e as características do contrato social para a saúde em Portugal. Compara-se abusivamente o desempenho das PPPs com a gestão pública, esquecendo-se que aquelas, por serem poucas, têm sido protegidas dos efeitos da incerteza orçamental, dos cortes e cativações que tornaram caótica a gestão do SNS. Finalmente, é falso que haja propostas de revisão de Lei de Bases que ponham em causa a existência do social e do privado em Portugal.
Da importância de verdadeiras parcerias. Os sectores privado e social têm um papel importante a desempenhar no sistema de saúde português. Parcerias efetivas entre o SNS e os outros sectores são indispensáveis. Para que elas sejam virtuosas terão que ser transparentes, informadas por um espírito cooperativo, ao abrigo das tentações concorrenciais, preservando a missão de cada parceiro. Devem favorecer a continuidade e integração de cuidados, e manter uma saudável reciprocidade na contribuição financeira de cada parceiro na realização dos objetivos de interesse comum.
Aprovar uma nova Lei de Bases não chega. O SNS, pese as suas dificuldades, é indiscutivelmente o maior sucesso da democracia portuguesa. Rever a atual Lei de Bases da Saúde é indispensável. Mas isso, só por si, não chega para comemorar os 40 anos do SNS. O país mudou nos últimos 40 anos e as necessidades de saúde e cuidados de saúde da população portuguesa evoluíram também. É necessário repor e acrescentar recursos, mas sobretudo transformar, construir um SNS do nosso tempo, com futuro.»
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