7.5.19

O fim-de-semana político para além da táctica



«Para quem vê a política como um campeonato de futebol, o fim-de-semana foi espectacular. Numa partida decisiva a jogar em casa, a equipa que lidera o campeonato entrou a marcar. Demasiado confiante, baixou a guarda e o adversário acreditou. O jogo foi para intervalo já empatado e recomeçou com uma pressão crescente sobre o primeiro classificado. Quando a viragem do resultado parecia iminente, o treinador chamou os jogadores e mudou de táctica. Numa decisão de risco, mandou-os avançar no campo. Ao primeiro erro do adversário, a poucos minutos do fim, a equipa da casa marcou, para gáudio dos apoiantes. A vitória no campeonato parece agora mais próxima e ninguém poupa elogios à genialidade do treinador.

Claro que a política é mais complexa do que o futebol. Faria mais sentido compará-la ao weiqi, o jogo chinês em que cada jogador vai colocando peças num tabuleiro com o objectivo de rodear e evitar ser rodeado pelo adversário. Aqui a posição é tudo. É um jogo de estratégia, em que os movimentos de um jogador afectam o posicionamento mais acertado do outro.

O que António Costa fez na sexta-feira passada não foi apenas uma alteração táctica. O líder socialista aproveitou uma movimentação do adversário para consolidar uma mudança estratégica em que estava a trabalhar há algum tempo.

Em 2015 Costa precisou do PCP e do BE para formar governo. Sabia que, para isso, era necessário posicionar o seu partido e o seu governo mais à esquerda. Ajustou a retórica ("não tenhamos dúvidas: se pensarmos como a direita pensa, acabamos a governar como a direita governou", afirmava pouco antes) e colocou a chamada ala esquerda do PS em posições-chave no partido e no governo. Com isto - e com algumas cedências ao PCP e ao BE - assegurou as condições para aprovar todos os orçamentos da legislatura.

O aproximar das eleições tornou evidentes os riscos daquele posicionamento, parecendo validar o que muitos dentro do partido defenderam desde o início. Segundo essa tese (que na verdade está por demonstrar) a imagem de um PS à esquerda abre espaço aos partidos de direita para conquistarem o eleitorado mais volátil (dito de centro). Ao mesmo tempo, uma legislatura bem-sucedida baseada em acordos com o PCP e o BE dá ao eleitorado de esquerda motivos para manter ou reforçar o voto nestes partidos. Por outras palavras, o PS estaria eternamente condenado a depender de terceiros para governar.

Daí que desde há uns meses o PS venha a ensaiar o seu reposicionamento, não perdendo uma oportunidade para sublinhar a distância que o separa dos partidos à sua esquerda. Fê-lo com a revisão das leis do trabalho, com as regras do alojamento local e com a nova lei de bases da saúde. Deste ponto de vista, o reconhecimento da progressão do tempo de serviço dos professores é só mais uma etapa no caminho do reposicionamento político.

Neste contexto, os socialistas não se inibiram de recorrer a uma retórica típica da direita, que põe os funcionários públicos uns contra os outros, os trabalhadores do sector privado contra os do público, e em que todas as diferenças de opinião são reduzidas a uma divisão entre responsabilidade e irresponsabilidade orçamental.

Ao nível estritamente eleitoral, o reposicionamento do PS convém também aos partidos mais à esquerda, que precisam de afirmar o seu espaço de intervenção marcando a diferença face ao governo. Também deste lado, ninguém perdeu a oportunidade para enfatizar os desacordos.

Para quem se revê no caminho da concertação e governação à esquerda, como é o meu caso, tudo isto poderia ser boas notícias: cada um dos partidos estaria a fazer o que lhe cabe para reduzir o apoio eleitoral às forças de direita. Depois do que se passou este fim-de-semana, é mais difícil pensar assim.

Já muito se escreveu sobre as imprecisões e incoerências na declaração de António Costa, que revelam predisposição para delapidar o capital de confiança entre parceiros. Mas o que sobressai deste episódio é mais do que excessos de linguagem ou o recurso a argumentos duvidosos, ao serviço de uma necessidade de reposicionamento simbólico.

As intervenções de Costa e de outros líderes do PS visam transmitir uma mensagem que vai para lá da ideia das "contas certas". O PS está a querer mostrar que não acredita na possibilidade de chegar a acordo com os partidos à sua esquerda sobre matérias essenciais como o serviço nacional de saúde, a escola pública, os direitos laborais, as carreiras dos funcionários públicos ou a organização do Estado.

Não obstante a preocupação em não hostilizar demasiado o PCP e o BE - nunca se sabe o que o futuro reserva - o PS dá sinais crescentes de querer pôr fim a uma solução que trouxe estabilidade política e maior confiança na democracia, e que permitiu avanços evidentes na maturidade do sistema partidário português. Não admira que entre os principais entusiastas da ameaça de demissão do Primeiro-Ministro estejam os mais ferozes opositores dos acordos à esquerda.

Os dirigentes do PS terão as suas razões para seguir este caminho. As sondagens dos próximos meses e as eleições que aí vêm mostrarão se os eleitores validam esta opção.»

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1 comments:

Unknown disse...

Só um imbecil ou um ingénuo poderia pensar que o PS é um partido de esquerda
Se lhe dessem hipóteses, pouco se afastaria do PSD. Afinal não se reclamam da social democracia?

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