30.6.19

A lei da hospitalidade



«Toda a gente tem a noção de que alguns povos antigos, em especial os gregos antigos, acreditavam na hospitalidade, em acolher o outro, incluindo, em determinadas circunstâncias, os estrangeiros. Era uma hospitalidade de curta duração, geralmente entre pessoas iguais. Mais difícil, mais louvável, é receber gente em situação muito desigual, por tempo indeterminado ou a título definitivo.

O estrangeiro, quer dizer, o estrangeiro sem nada de seu, com a roupa do corpo apenas ou a casa às costas, é visto hoje como um intruso. Vem perturbar as sociedades ocidentais com os seus males e deixa-nos inquietos quanto ao seus costumes, quanto aos perigos que representa. Não conheço uma única solução coerente e completa para o problema actual das migrações, mas sei que nessa transição da antiga hospitalidade doméstica para a moderna hospitalidade política há um princípio que não devíamos desprezar, um princípio a que Kant chamou “o direito de não ser tratado como um inimigo”, e que aqui funciona como uma espécie de cosmopolitismo dos pobres.

Há, entre os migrantes, inimigos do modo de vida europeu? Há, como há cidadãos europeus inimigos desse modo de vida. Mas a pergunta sobre “o que é a Europa” tem forçosamente resposta em Vintimille, Tempelhof, Tompa, Calais, Lesbos, Lampedusa, nos campos e aeroportos, nas águas do Mediterrâneo que já não são as de um livro de Braudel em conversas da burguesia culta, mas antes barcos, barquinhos, barcaças. Barcos frágeis, ilegais, a transbordar, barcos de “indesejáveis”, migrantes, exilados, refugiados, os boat people deste século, fugidos da fome, da guerra, da tirania. Neste contexto, a decisão de hospitalidade é antes de mais uma constatação acerca da vulnerabilidade humana, como escrevem Fabienne Brugère e Guillaume Le Blanc em “La fin de l’hospitalité”, usando a imagem de um desconhecido que nos toca à porta a meio da noite pedindo ajuda.

Um “direito de hospitalidade” irrestrito é impraticável, mas que se tenha concebido um “delito de hospitalidade” também me parece inconcebível. Há uma dimensão ética na hospitalidade que vai além do doméstico e é anterior à política. É a decisão de auxílio ao refugiado e de hospitalidade ao migrante. Um português que não entenda isto não respeita o nosso passado colectivo. Um cristão que seja contra isto é um cristão absurdo. A Bíblia, aliás, dedica várias passagens a histórias de acolhimento de estrangeiros, como, no Antigo Testamento, a escrava Agar, de quem Abraão teve Ismael, episódio que alguns autores lêem como uma possibilidade de tréguas entre árabes e judeus. Ou como, no ‘Livro dos Reis’ e em Lucas, o general sírio Naamã, inimigo dos israelitas, que o profeta Eliseu escolheu, curando-o da lepra. Estas histórias, não isentas de conflitos bem explicitados, mostram que o “outro” deve ser aceite, deve ser salvo, mesmo quando isso é incómodo ou inconveniente.

A questão das migrações não é decerto da ordem da evidência, mas depende de algumas evidências, como a comum humanidade, a comum fragilidade, o dever de auxílio. Há decisões a tomar pelos governos europeus, jurídico-diplomáticas, laborais, habitacionais, de tolerância e convivência, de segurança e defesa, e não subscrevo os idealismos que negam essas dificuldades; mas inquieta-me que tantos europeus prefiram as leis da hostilidade às leis da hospitalidade.»

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