«Amanhã [hoje], greve geral no Brasil. Provavelmente apenas a primeira que o inconcebível Bolsonaro terá de enfrentar. Campeão da direita mais extrema das Américas, o homem que conseguiu como ninguém fundir religiosidade histriónica e a dimensão punitiva do voto (classe média contra pobres, homens que se sentem ameaçados pelas mulheres, brancos que sentem desafiada a sua hegemonia) acabou por despertar o espírito de resistência dos brasileiros. Se o que espoletou a convocatória da greve é a reforma da Previdência (da Segurança Social, diríamos nós aqui), com toda a crueldade social que ela implicará, foram os cortes cegos que o Governo fez na Educação que levaram milhões de brasileiros (de “imbecis”, segundo Bolsonaro) às ruas em duas manifestações gigantescas no mês passado.
Para perceber o bolsonarismo como neofascismo adaptado às condições específicas da segunda década do século XXI é essencial entender essa dimensão de militarismo social — o mesmo que está presente na política israelita — que aponta o dedo a “inimigos internos” a abater para conseguir “redimir” a sociedade. O ataque ao Estado (pouco) social brasileiro, objetivo central há 40 anos de políticas económicas defendidas em todo o mundo por setores muito mais amplos que a extrema-direita, faz-se acompanhar no caso do bolsonarismo de uma linguagem paranóica que o tornou conhecido em todo o mundo.
Os cortes e cativações (no Brasil chamam-lhes contingenciamentos) de 30% do orçamento federal para a educação, que afeta sobretudo as universidades federais (quase toda a educação básica e secundária pública é gerida pelos estados), foram feitos acompanhados de um discurso de “desesquerdização” do ensino e de acusações, feitas diretamente pelo ministro da Educação, de que as universidades estariam cheias de “gente nua” e de camponeses “sem terra”, em resumo, uma “balbúrdia”. Soltar pérolas destas a partir do Governo é tudo menos inofensivo num dos países recordistas da violência no mundo. Ainda no sábado passado a polícia terá conseguido gorar uma ameaça à Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe), uma das maiores do país, feita na deep Web por um atirador com arma automática, que descrevia a Ufpe “repleta de marxistas (…) fedendo a merda e a maconha, [que] utilizam o espaço da faculdade para implantar suas fantasias e criticar Bolsonaro e a reforma da previdência” (Diário de Pernambuco, 9/6/2019). É tudo menos precipitada a avaliação que há semanas a Amnistia Internacional fez da situação: “A retórica antidireitos humanos que marcou toda a carreira política do Presidente (...) está a começar a ser traduzida em medidas e ações concretas que ameaçam e violam os direitos humanos de todas as pessoas no Brasil.”
Mergulhado o país desde 2014 numa recessão que marca bem os limites de um modelo baseado na desigualdade social, as elites económicas brasileiras estabeleceram como objetivo reduzir o parco gasto social do governo e intimidar uma mão-de-obra já de si profundamente marcada pela precariedade e informalidade (40,8% dos trabalhadores sem contrato em 2017, 42% descontam, em média, apenas 4,9 meses/ano — El País-Brasil, 3/6/019). Não perderam tempo em desembaraçar-se de Dilma (2016), mas Temer não foi capaz de impor os cortes radicais no direito à reforma. Foi essa a primeira das tarefas de que encarregaram Bolsonaro. O novo Governo sabia que enfrentaria uma forte resistência social, mas nem por isso deixou de abrir várias frentes ao mesmo tempo: contra as populações indígenas, os defensores dos direitos humanos e as ONG, professores e estudantes… O que não esperava é que dias antes da greve geral fossem reveladas conversas que provam a parcialidade descarada do ex-juiz Sérgio Moro, hoje ministro da Justiça, no apressado julgamento de Lula. Moro, ídolo do reacionarismo classista brasileiro disfarçado de castigador de corruptos, é a carta de reserva do setor militar do novo regime (bem como dos EUA, que há anos o apaparica como faz com Guaidó), pode continuar a ter o apoio blindado de Bolsonaro (a popularidade de Moro é-lhe imprescindível), mas tem o que restava do seu prestígio profissional na lama.
Não se diga depressa de mais que os brasileiros, responsáveis pela eleição de Bolsonaro, se resignaram a ter de o aguentar e à sua inenarrável prole durante os próximos quatro anos. É desta resistência empenhada que pode surgir a alternativa.»
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