17.7.19

Von der Leyen: um erro crasso dos socialistas ibéricos



«Já vimos este filme antes, e não acabou bem. Em 1994 os governos da União Europeia estavam com dificuldade em escolher um sucessor para Jacques Delors. Como sempre, queriam alguém que satisfizesse toda a gente e não fizesse sombra a ninguém. Delors, que governara a Comissão durante dez anos, tinha personalidade e isso é que não podia mesmo ser. Depois de excluírem três candidatos mais prováveis, os chefes de Estado e de governo optaram por uma quarta escolha: Jacques Santer, primeiro-ministro do Luxemburgo.

O Parlamento Europeu detestou a opacidade do processo de nomeação e ameaçou chumbar o nome de Santer para a presidência da Comissão Europeia. Suspeitando uma notícia na geralmente sonolenta política europeia, os jornalistas dirigiram-se a Estrasburgo pela possibilidade de assistirem a uma estreia: pela primeira vez na história, era possível que o Parlamento Europeu chumbasse uma nomeação. Na última hora, porém, os socialistas portugueses e espanhóis, de António Guterres (então ainda líder da oposição) e Felipe González, viraram o bico ao prego e decidiram apoiar o luxemburguês. Jacques Santer passou à rasca e tornou-se o presidente da Comissão Europeia eleito com menos apoio no Parlamento Europeu. Até ontem, inclusive.

A partir daí Jacques Santer foi sempre um presidente da Comissão fraco, com pouco respeito por parte das outras instituições e pouca autoridade sobre os seus comissários. A sua Comissão foi permanentemente afetada por problemas de clientelismo, nepotismo, favoritismo e até corrupção. Em 1999, Jacques Santer acabou por se demitir antes da apresentação de uma moção de censura no Parlamento Europeu que decerto perderia. A UE perdeu quatro anos, perdeu credibilidade e perdeu o respeito dos cidadãos — em alguns casos, até hoje. Lamentavelmente, com o apoio dos socialistas portugueses e espanhóis.

Esta terça-feira Ursula von der Leyen foi aprovada no Parlamento Europeu com 383 votos — apenas nove votos acima dos 374 necessários. É a presidente da Comissão eleita com menos apoio parlamentar desde Jacques Santer. Não ficámos muito longe de se fazer história, com a primeira rejeição de uma nomeação do governos para a Comissão Europeia.


Curiosamente, Ursula von der Leyen foi também a quarta escolha do Conselho. Mas o que torna 2019 pior do que 1994 é que desta vez as três primeiras escolhas tinham sido legitimadas pelos cidadãos. Ursula von der Leyen, não. Ao contrário de Manfred Weber e Frans Timmermans, Ursula von der Leyen não apresentou propostas a eleições, não fez debates, não deu sequer a cara como candidata à presidência da Comissão. Ao contrário de Margrethe Vestager, que também poderia ter sido a primeira mulher presidente da Comissão, Von der Leyen não foi sequer candidata às eleições europeias nem fez parte de uma equipa de candidatos à Comissão. E estes chefes de Estado e de governo ainda há pouco mais de um mês prometeram aos eleitores europeus que o seu voto permitiria escolher a chefia do executivo da União Europeia. Parece que não sabem, pela experiência recente — e eterna — que políticos a quebrarem promessas levianamente é a forma mais eficaz de esvaziar a política enganando os cidadãos.

Pior ainda, sabemos muito bem por que foi excluído Timmermans (e Vestager nem chegou a ser verdadeiramente testada): porque os governos da Hungria e da Polónia detestaram que alguém na Comissão tivesse feito o seu trabalho, preocupando-se com as violações dos princípios mais elementares do Estado de direito e dos valores da União nos últimos anos. A mensagem para os comissários futuros é muito simples: se levarem a sério os valores descritos no Artigo 2 do Tratado da União Europeia — dignidade da pessoa, liberdade, igualdade, democracia, Estado de direito e direitos humanos, incluindo das minorias —, a vossa carreira política europeia nunca avançará.

Contente com a escolha de Ursula von der Leyen, Orbán deu ordens para que os 12 deputados do seu partido Fidesz votassem a favor da nomeada pelo Conselho. Eles assim terão feito (o voto é anónimo) e pode inferir-se que os seus votos tenham sido decisivos. Orbán proclamará de novo vitória, e comportar-se-á como se tivesse a presidente da Comissão no bolso.

Mas há mais: como em 1994, mas em condições consideravelmente piores, os líderes dos socialistas portugueses e espanhóis — António Costa e Pedro Sanchez — acabaram dando o seu apoio a Von der Leyen antes da votação no Parlamento, e podem muito provavelmente ter sido também decisivos, dada a estreiteza da aprovação de Von der Leyen. O argumento definitivo terá sido uma carta que Von der Leyen escreveu aos socialistas europeus prometendo uma série de coisas que já são posição da Comissão ou que ela por si só não pode cumprir (porque onde essas coisas estão bloqueadas é no Conselho). Para ser justo, Von der Leyen prometeu uma coisa importante: apresentar legislação de cada vez que o Parlamento o pedir, na prática concedendo o direito de iniciativa legislativa que o PE sempre deveria ter tido.

Mas até nisso a desgraça se anuncia feia. Ursula von der Leyen não pode cumprir todas as promessas contraditórias que fez. Não pode levar a sério o Estado de direito, como prometeu aos Verdes europeus, e deixar a Hungria e a Polónia em paz, como insinuou aos Conservadores europeus. No momento em que deixar descontentes uns ou outros, basta esperar por um pretexto para que lhe aconteça o mesmo que sucedeu a Jacques Santer. E mais uma vez os socialistas ibéricos terão sido co-responsáveis. E a pergunta: aqui em Portugal alguém ouviu António Costa ou Pedro Marques dizerem que fariam isto na campanha das europeias?

Gostaria muito de estar enganado. Mas não será possível sequer montar um colégio de comissários forte com apoio tão fraco. Sendo assim, a nova crise política chegará ao Parlamento Europeu em outubro, quando for votada a nova Comissão. Este é o pior de todos os mundos para a UE.»

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