«Chamem a guarda e a tropa, reúnam os ministros e convoquem os tribunais, racionem e façam filas açambarcadoras, leiam manchetes, debates e listas de carências futuras, preparem bidões e ouvidos para as sirenes, proclamem, exclamem e declarem que Portugal está oficialmente em estado de emergência! Mas se a intensidade deste troar de tambores alvoroçantes vos não parecer ridículo, ponham os problemas que nos agitam à venda: qualquer outro país trocará os seus pelos nossos, talvez pasmado com os nossos absurdos, e nos pergunte se são estes pequenos ventos as nossas grandes tempestades.
É um luxo um país inteiro poder ficar transido com uma bagatela destas, mas é também uma demonstração de imprevidência e inépcia que ele se tenha agigantado a este ponto. A dramatização coletiva do processo que levou ao estado de emergência energética é quase uma diversão, não porque divirta mas porque distrai. No final farão balanços e graves cogitações, participando num entorpecimento do que à volta permanece ruim neste país de pólvora seca.
Esta semana, só nesta última semana, neste mesmo mês de agosto, 31 pessoas foram mortas em tiroteios no Texas e no Ohio, com os democratas a extremarem acusações a Trump de ter um discurso racista e apologista do supremacismo branco; um relatório das Nações Unidas antecipa uma cisão populacional entre ricos e pobres por causa de escassez alimentar global; a gigante agroquímica Monsanto, que tem sido investigada por suspeitas de adulteração de produtos da cadeia alimentar, foi alvo de uma fuga de informação que revela planos e táticas para difamar online jornalistas críticos; o fundador de um site neonazi foi condenado por ter desencadeado uma tempestade na internet para destruir a reputação de uma mulher judia; a Austrália está em estado de emergência por causa de um inverno com ventos, neve e chuva devastadores; no Brasil, Bolsonaro é acusado de abençoar a ruína da floresta amazónica; no México, um cartel de droga terá assassinado 19 pessoas, deixando os corpos mutilados ou pendurados seminus numa ponte na capital; na Venezuela, a intensificação das sanções americanas está a ameaçar (ainda mais) os direitos humanos dos mais desfavorecidos; a Índia retirou o estatuto especial a Caxemira, “fechou” as comunicações, prendeu políticos e dividiu o território em dois, enfurecendo o Paquistão e irritando a China; na China denunciam-se restrições à liberdade religiosa, “campos de treino vocacional” usados para limpeza étnica e genocídio cultural e mais um caso de trabalho de menores pela noite dentro, desta vez fabricando componentes para produtos da Amazon; em Hong Kong mais de 600 pessoas foram presas em dois meses de manifestações contra a proposta de lei de extradição, agravando-se as intimidações policiais em novos protestos; a Malásia processou 17 altos responsáveis da Goldman Sachs por envolvimento num escândalo bilionário de corrupção e lavagem de dinheiro; em Itália, a Liga apresenta uma moção de censura contra o próprio Governo para provocar eleições que podem reforçar o poder da extrema-direita, em Espanha ainda não há governo e no Reino Unido, onde a economia está a derrapar para uma possível recessão, as férias dos assessores do Governo foram canceladas, suspeitando-se de um plano para convocar eleições-relâmpago depois de um ‘Brexit’ sem acordo... Paremos por aqui, esta lista rápida desta última semana basta como fita métrica para as nossas combustíveis desgraças.
Nem tudo é mau nesta nossa crise, é por exemplo bom ver que é através de instituições democráticas que se faz a discussão, em torno desta greve, sobre proporcionalidades. A desproporção está na escala que esta crise sindical ganhou em todo o país, como se todo o país não tivesse problemas mais profundos e prolongados. Se é isto que nos para, e se é isto que põe cadeias às avessas no Governo, estamos entre a sorte e a distração. Por isso leiloem os problemas que nos agitam. Qualquer outro país dirá: Portugal, dá-me os teus problemas.»
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