«Talvez não tenhamos ainda reparado, mas aquilo que se está a globalizar não é apenas o capital ou o investimento, as empresas ou a inovação, o turismo ou a tecnologia – é também o desespero.
De alguém que foi despejado da sua casa por não poder pagar o valor da renda, do imigrante que trabalha como escravo “invisível” na agricultura, do operário industrial substituído por mão-de-obra barata contratada do outro lado do mundo, da criança explorada numa mina na Índia, da mulher que recebe menos que o colega de trabalho pela mesma função, do idoso que espera nos hospitais por uma operação, das populações dos bairros de barracas que aguardam infinitamente por melhores condições de vida, das vítimas da discriminação, do racismo ou da xenofobia, do jovem que envelheceu e subsiste de um trabalho precário, da população rural que sofre com o abandono e o isolamento, dos índios perseguidos na sua floresta pelos madeireiros, etc.
Este desespero é directamente proporcional à erosão que o mercado económico global foi semeando na sociedade e nos territórios. É que a “mão invisível” de Adam Smith (o mercado “auto-regulado"), afinal, concentrou o poder e a riqueza à custa da escassez das pessoas, da instabilidade social e da degradação ambiental. Foi uma mão que chegou para “dividir e reinar", explorando as feridas existentes – coloniais, raciais, de género, religião e classe para prosseguir o seu plano. Consigo trouxe um léxico financeiro que povoou e tornou refém o discurso e as práticas políticas.
Ao Estado Social redistributivo e que provisiona sucedeu o Estado Liberal da “competitividade”, da “flexibilização laboral”, da “atracção de investimento estrangeiro”, da “privatização” – um Estado que se “funde com o capital” e por isso é cada vez mais permeável à corrupção. Se a “mão invisível” se impôs sobre os países e as suas legislações, as pessoas e o ambiente, munindo-se de todos os dispositivos jurídicos, institucionais e tecnológicos para agir globalmente, pelo contrário a luta contra as desigualdades permanece dispersa no interior de uma geografia de nações e do seu sistema de contradições internas.
Para agravar, os contentores ideológicos tornaram-se difusos. Ao “conflito entre classes” sucederam-se os interesses dos diversos “grupos sociais” e agora, no limite, resta-nos a nossa própria “identidade” como forma de expressão e argumento no combate político. Será suficiente ou terá chegado o momento de “globalizar” a própria luta? O grau de marginalização e de invisibilidade ampliou-se a camadas vastas da sociedade — implica, por isso, que articulemos “conjuntos de reivindicações diversas” numa mão colectiva comum — tal como se anuncia nas questões ambientais. Só assim será possível fazer frente a um sistema económico cumulativo, global, monopolista e desregulado que se apoia na produção da desigualdade (entre pessoas e territórios) e na dispersão da luta social para progredir. Se este não for o caminho, o melhor será começarmos a poupar minutos de silêncio pelo conjunto de democracias que poderão colapsar. À nossa volta multiplicar-se-ão os rinocerontes psicóticos da peça do Eugéne Ionesco.»
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