23.12.19

Bota apertada magoa os dedos



«A apresentação do Orçamento do Estado (OE) para 2020 e a discussão em curso, despertaram-me a imagem do que nos acontece quando adquirimos, ou "herdamos" de alguém, umas botas apertadas: magoam-se os dedos dos pés e podemos ficar com bolhas dolorosas que nos obrigam a andar de chinelos.

Lembrei-me também de ter visto, na minha primeira visita à China, em 1984, duas mulheres chinesas com pés minúsculos resultantes da "tradição" de, desde crianças, comprimirem os pés para que ficassem sempre pequenos. Estas imagens colocam-me uma interrogação: será que estamos condenados a ter uma sucessão de OE sempre a apertar-nos, tolhendo a vida do povo e a capacidade de percorrer novos caminhos, e tornando o país definitivamente pequenino?

Observemos enfoques que o Governo vai enunciando, reflitamos sobre áreas relevantes do caderno de intenções que o OE corporiza e os sinais que procura dar à sociedade, na certeza de que entre objetivos enunciados e a sua concretização existirá uma enorme distância. E só a ação política concreta vai determinar o que é falso ou verdadeiro.

A generalidade dos portugueses quer um Orçamento de "contas certas", mas tem o direito de afirmar - inclusive através das forças políticas e sociais - as prioridades para as suas vidas, de dizer não a compromissos sagrados face a políticas perniciosas da União Europeia e a rendas em alguns setores, de questionar se o OE deve ter excedente. Isso não põe em causa o rigor com as contas nem o respeito pelos nossos compromissos coletivos. O comum dos cidadãos é responsável nas escolhas que faz para a gestão dos seus recursos, que às vezes são muito escassos; é rigoroso e envergonha-se quando está em falta. Ao contrário, muitos ricos e poderosos, que consideram o povo tendencialmente gastador, não cumprem as suas obrigações, mentem descaradamente, só respeitam a ética da "Família" a que pertencem, e protegem-se em interpretações das leis que tornam os seus roubos legais.

Quando há dinheiro deve-se investi-lo (bem) e não faltam áreas onde a aplicação dos cerca de 500 milhões de euros, que se projetam como excedente para o OE 2020, possam produzir significativos ganhos futuros para os portugueses. O endeusamento do excedente não tem nada de científico.

Quando, para efeitos de política salarial e de atualização dos escalões do IRS, o Ministro das Finanças escolhe a inflação prevista para 2020 (0,3%) em vez de ter em conta a verificada em 2019 (1%) não o faz por nenhuma razão científica ou técnica, mas tão-somente porque assim condiciona o crescimento dos salários, desde logo na Administração Pública (AP) e das pensões, e porque coloca muitos portugueses a pagarem mais impostos. É positivo afirmar-se prioridade à saúde, mas este setor, como outros, não se tornará mais eficaz sem valorização dos seus profissionais.

Um OE é bom quando aposta no desenvolvimento social e humano, no trabalho e atividades dignas, nas condições de produção de riqueza e sua justa distribuição, no conhecimento, na participação cívica e na cultura; quando coloca as pessoas como sujeitos dos seus direitos e deveres e não deixa ninguém abandonado aos caprichos da benevolência alheia. Em alguns destes campos o OE para 2020 não avança com sinais positivos e coloca espartilhos que nos podem magoar.»

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