«A abordagem do governo enquanto entidade patronal aos aumentos salariais na função pública é contraditória da iniciativa do governo enquanto parceiro na regulação do mercado de trabalho de revalorização salarial ao longo desta legislatura.
O Primeiro-Ministro anunciou logo nos primeiros dias de governo uma ofensiva para alcançar uma repartição mais equitativa do crescimento económico", impondo "melhorar os rendimentos de quem trabalha". Coerentemente, procedeu a um aumento de 5,8% do salário mínimo. Mais, o Governo foi à concertação social iniciar pela primeira vez em vinte anos um debate que visa assumidamente a valorização dos salários pela "fixação de referencial médio para atualização dos salários convencionais com (i) diferencial face à evolução esperada da produtividade e inflação; e com (ii) convergência com a média da EU relativamente ao peso dos salários no PIB.
No documento de abertura da negociação, o Governo apresentou mesmo aos parceiros sociais o cálculo da valorização salarial que resultaria da incorporação das variações esperadas da produtividade e da inflação: aumentos salariais anuais de 2,7% em 2020, 2,9% em 2020 e em 2021 e 3,2% em 2023.
Ficou por apresentar o cálculo da correção necessária para cumprir o critério da convergência com o peso dos salários no PIB na média da União Europeia. Num estudo para o observatório das crises e das alternativas, o economista José Castro Caldas deu uma ajuda para pensar a ordem de valores a considerar, ao calcular que, para que a parte dos salários no PIB regressasse numa legislatura ao valor que tinha em 2009, a valorização salarial teria que atingir os 4% em média anual. Muito provavelmente este cálculo aproxima-se da realidade por defeito, dado o efeito que tal valorização salarial teria na procura interna e, portanto, no crescimento do PIB. Mas também ninguém disse que os objetivos anunciados pelo Governo têm que ser conseguidos numa legislatura e pode até ser realista que se estendam por um prazo mais prolongado. É o tipo de questões que um acordo na concertação pode e deve negociar.
O Primeiro-ministro defendeu também a valorização salarial dos jovens qualificados. Os baixos salários de ingresso no mercado de trabalho são um acelerador da migração de jovens quadros e a iniciativa visa reter o potencial económico que deriva do nosso sistema de qualificações e que se perde quando o saldo migratório de quadros é negativo.
Por todos os sinais dados, o Governo enquanto ator da regulação do mercado de trabalho quer que esta seja a legislatura da revalorização salarial. Mas, enquanto maior patrão da economia portuguesa, o Estado acaba de anunciar a intenção exatamente oposta.
A proposta do Governo para o aumento salarial no setor público tem em conta apenas a inflação. O Estado-patrão não prevê considerar nenhuma das dimensões da revalorização salarial que o Estado-parceiro na regulação do mercado de trabalho propôs ao país. Não acomoda nenhuma participação dos trabalhadores do setor Estado no aumento da produtividade, não tem nenhuma referência ao ritmo de convergência com a UE, não inclui nenhuma medida de diferenciação positiva dos trabalhadores qualificados em início de carreira.
Um otimista dirá que, ao fim de uma década de congelamento nominal, portanto de perda anual do poder de compra dos trabalhadores da administração pública esta proposta de congelamento real dos salários é até um passo em frente.
Um realista salientará que na situação das contas públicas não há ainda margem para valorizações salariais como as que se estão a propor para o conjunto da economia.
Ambos terão razão. O que choca não é que o Governo assuma que, como uma empresa em situação difícil, terá que fazer a revalorização salarial mais devagar, talvez adiá-la, introduzi-la apenas parcialmente, ao ritmo das possibilidades. Ninguém quer o Estado em risco de bancarrota. O que perturba é que o Estado, que é um grande empregador e um grande empregador de jovens qualificados, necessários a que possa produzir serviços públicos de qualidade não reflita nas suas propostas nenhum dos elementos do discurso do Primeiro-Ministro, nem da iniciativa na concertação social, nem sequer para explicar publicamente porque não está em condições de adotar plena ou parcialmente à sua própria prática patronal o que recomenda aos patrões do setor privado. Com esta abordagem, o Governo enfraqueceu muito significativamente a sua credibilidade na concertação.
Porque haviam os patrões de levar a sério o que diz Frei Tomás? Porque deverão os trabalhadores do setor público aceitar que são um sub-universo ao qual se não aplicam as ambições de revalorização salarial propostas pelo governo ao país?
PS. Este artigo carece de uma declaração de interesses. Na parte da minha vida profissional em que trabalho para o Estado como Professor Convidado do ISCTE-IUL tenho interesse na política salarial do governo e enquanto sindicalizado no SINTAP tenho interesse na posição que esse sindicato venha a tomar face à proposta do governo.»
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