«"O jornalismo é a arte de chegar demasiado tarde, logo que possível."
Este sarcasmo certeiro do escritor sueco Stig Dagerman sobre uma profissão que foi também a dele vem-me muitas vezes à mente. Veio, por exemplo, a propósito da tentativa que fiz de compreender o que se passou com Sara Furtado, a jovem sem-abrigo que confessou ter colocado num ecoponto o bebé que deu à luz na madrugada de 4 para 5 de novembro.
Não o que sucedeu na cabeça dela ou na vida dela; para tal teria de chegar à fala com ela, e mesmo assim. Não: a ideia de partida do meu trabalho era só perceber o que poderia ter acontecido se tudo o que podia correr bem naquelas circunstâncias corresse bem. Naquelas circunstâncias de uma tão jovem mulher - e quem contactou com ela garante que parece ainda mais nova do que os seus 22 anos - a viver na rua, grávida ainda por cima, que respostas sociais e legais poderiam e deveriam ter existido. E por aí perceber o que é e como funciona - ou não funciona - o apoio aos sem-abrigo em Portugal.
A minhas questões eram simples: que era suposto ter acontecido a esta mulher quando foi detetada na rua, e porque não aconteceu? Porque não quis, fugiu, recusou, ou porque não lhe foi proposto? E quem tem a obrigação de responder a isto?
A frase de Dagerman, naturalmente, não tem apenas a ver com o tempo. Claro que quando os jornalistas chegam é quase sempre para perguntar o que aconteceu antes, quando não estavam lá. Mas esse chegar atrasado logo que possível tem também a ver com perceber o estritamente necessário para relatar - porque a seguir vai haver um assunto diferente e, como ouvi no meu tempo de estagiária, "amanhã o jornal está a embrulhar peixe". A ideia de que o jornalismo é um produto consumível, rápido, que deve até evitar a demasiada ambição e o demasiado conhecimento que paralisam, causam pânico no momento de dizer, de escrever, de organizar a informação - para além da noção de que "as pessoas não estão interessadas em coisas muito longas, que dão trabalho a ler".
Esta rapidez e superficialidade deploradas por Dagerman sempre existiram, não são um fenómeno só de hoje e do digital. Mas é um facto que agora, com os canais de notícias e os sites, se esgota muito mais rapidamente um tema - até pelo efeito de saturação - e há ainda menos tendência para o "escavar". Porque escavar leva tempo e o mais certo é que quando um produto jornalístico mais aprofundado estiver pronto já ninguém queira sequer ouvir falar do assunto: "passou".
É isso que em parte explica que na história da sem-abrigo-que-pôs-o-bebé-no-lixo praticamente só tivéssemos ouvido falar das "equipas de rua" - as equipas de várias organizações que vão ao encontro dos sem-abrigo para lhes dar alimentação, roupa ou oferecer cuidados de saúde - e para a generalidade das pessoas tenha ficado a ideia que é só essa "sopa dos pobres" que existe como resposta. Mas não. Ou melhor, não é suposto ser só isso. Há uma estratégia nacional para a integração das pessoas sem-abrigo e núcleos municipais que incluem todas as organizações não governamentais e organismos públicos que alegadamente trabalham em rede na prossecução dessa estratégia. E, claro, dotação orçamental para esse desiderato - o de "tirar as pessoas da rua". Em Lisboa, o NPISA, Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo, inclui mais de 20 instituições e tem coordenação da câmara municipal.
Esta coordenação, porém, primou pela absoluta ausência em todo o noticiário sobre o caso de Sara. Basta googlar o nome da sem-abrigo, bebé, lixo e NPISA para concluir que não houve até agora declarações, esclarecimentos, um comunicado que fosse, vindo dali.
Sucedeu, aliás, precisamente o contrário. Quando a 26 de novembro, 18 dias após a detenção de Sara, solicitei ao NPISA, através da respetiva coordenadora, Teresa Bispo, informação básica sobre o que tinha sido feito no caso, fui remetida para o gabinete da vereação de Manuel Grilo (BE), o qual por sua vez se limitou a enviar-me informação genérica sobre o funcionamento do NPISA e a remeter-me para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Esta, para além de fazer parte do NPISA, já tinha comunicado publicamente que não tinha no sistema uma Sara Furtado. Ou seja, a coordenação do NPISA e a vereação dos Direitos Sociais lavaram as mãos, chutando para o lado.
Ora sabe-se que Sara vivia na rua desde pelo menos julho e que desde essa altura estava credenciada. E que quer isto, credenciada, dizer? Que tinha sido "entrevistada" por um técnico de apoio social de uma instituição pertencente ao NPISA, o qual escrevera uma "carta de encaminhamento" na qual se atestava o estado de necessidade de Sara e constava obrigatoriamente o seu nome e idade, assim como o tipo de serviços a que devia ter acesso: alimentação, por exemplo.
Tal carta, que Sara apresentava para ter acesso ao refeitório na Associação João 13, onde ia muitas vezes jantar, teve de ser assinada pelo técnico, que deveria ter dado entrada do nome e características daquela pessoa no sistema - a plataforma do NPISA, acessível a todos os técnicos do núcleo. A partir daí, a existência daquela mulher sem-abrigo de 22 anos - um perfil muito raro nesta população - teria de ser do conhecimento de todos os organismos com acesso à plataforma.
A primeira questão é pois: que instituição credenciou Sara, e o que foi feito a partir daí? Foi-lhe atribuído, como é suposto, um "gestor de processo", para tentar criar com ela uma alternativa para sair da rua? E, nesse âmbito, que lhe foi proposto, se alguma coisa? Por outro lado, se foi referenciada, como é que a Santa Casa não a encontra no sistema?
Estas perguntas deveriam ter sido feitas desde o início, desde o momento em que Sara foi detida. Mas a maioria dos jornalistas, como eu, nada sabia das regras do apoio aos sem-abrigo, de como é suposto as coisas acontecerem ou até da existência de uma coordenação.
É que quase todo o jornalismo que se faz sobre sem-abrigo se ocupa sobretudo das "histórias humanas", quer dos sem-abrigo quer das "equipas de rua", muitas vezes compostas de voluntários, e passa ao lado do resto.
O resto, que é chato, mete papelada, requerimentos de RSI, propostas de habitação e projetos de vida. Implica investimento e empenhamento público para além de sandes, sopa, banhos e centros de acolhimento de emergência e é o que pode fazer a diferença entre tirar aquelas pessoas da rua ou não; é o que poderia ter evitado o que sucedeu com Sara e o bebé. Era sobre esse resto que nós, jornalistas, deveríamos ter exigido informação. Não ajudou, claro, que não soubéssemos a quem, e que a entidade com obrigação de dar essa informação se tenha invisibilizado. Não ajuda que, como tantas vezes sucede em Portugal, as instituições públicas funcionem como se não vivessem em democracia e não tivessem obrigações de transparência e prestação de contas.
E não ajuda ser tarde. Mas aqui estou, atrasada mas logo que possível, a pedir contas. Sara está detida há mais de um mês, como mais de um mês de vida tem o bebé salvo do lixo. E ainda não vi, não vimos, um comunicado, um esclarecimento, qualquer coisa - de esquerda, já agora - do NPISA e da Câmara de Lisboa sobre o assunto. Não vimos um anúncio de inquérito sobre o caso, como se fosse possível algo assim acontecer e não haver uma averiguação formal, um apuramento de responsabilidades.
Como se, à partida, se decidisse que não há nem pode haver responsáveis; que o que sucedeu é normal, que não havia nada a fazer e não vale a pena perder tempo com o que lá vai. Como se à partida o NPISA nos estivesse a dizer que não serve para nada, que isto da intervenção junto dos sem-abrigo é uma completa treta da qual não podemos esperar mais do que carrinhas a distribuir sopa.
Como se aquele bebé no lixo fosse um gesto radical performativo, espelho brutal do nosso não querer saber.»
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