«Havia de chegar o preço dessas escolhas tão atribuladas: uma dura campanha para acabar com a geringonça, depois a promessa no domingo das eleições de um novo acordo, para logo ser desmentida por uma rutura matreira (ainda alguém se lembra de que a razão invocada pelo PS para recusar um acordo escrito foi que tinha um entendimento de palavra com o PCP e não o queria prejudicar?), para chegar, finalmente, a um Orçamento em passo de corrida um mês antes do prazo, suportado por algumas negociações apressadas, inconclusivas e em todos os azimutes, umas conversas com as esquerdas ou o PAN e outras com o PSD-Madeira, tudo polvilhado com variadas medidas, umas atenuadoras de dificuldades, na saúde, e outras apimentadoras de uma greve geral, nos salários.
Uma primeira leitura da proposta do Orçamento evidencia alguns dos resultados desta engrenagem. Deixo para sábado uma análise mais detalhada e sublinho por agora o primeiro resultado desta dança orçamental, que é uma técnica nova de publicidade, o que alguém descreveu, com aquele carinho que seria de esperar, como “António Costa aprendeu a comunicar”: o Governo procura antecipar as sugestões dos partidos de esquerda e, em vez de negociar os detalhes, procurando um acordo substancial, bombardeia-os com a antecipação de medidas que atalhem caminho ou que, mesmo que vagamente, respondam ou, nalguns casos, até contrariem essas esperadas propostas.
Um exemplo é a subida extraordinária das pensões: instalado o escândalo (parece que já não se pode utilizar a palavra “vergonha”) da continuidade do congelamento de algumas pensões e da perda de valor real de todas as que só são misericordiosamente aumentadas em 0,2% ou 0,7%, o Governo sabe que as esquerdas proporão pelo menos um aumento extraordinário das pensões mais baixas, além do ajuste de todas pela taxa prevista de inflação, e vai daí promete no texto do OE o que era impossível na semana passada, esse mesmo aumento extraordinário. Não diz quanto, de modo que alguma coisa se determinará na especialidade, mas concede e apresenta antes mesmo de discutir o que poderia ter discutido antes de apresentar o seu Orçamento.
O segundo resultado deste imbróglio autoimposto é a multiplicação de normas programáticas ou, dito em bom português, de promessas vagas para justificar a recusa de medidas concretas. Em questões relevantes, o Governo usa a velha técnica de apresentar a corajosa constituição de uma comissão, ou mesmo, quando quer ir mais longe, declara que haverá um relatório, a seu tempo, bem entendido. Trabalho por turnos? Comissão e relatório. Cuidadores informais? Venha relatório. Escalões do IRS? Em 2021 é que vai ser, ninguém nos segura, no próximo ano é que não. IVA da eletricidade? A União Europeia vai fazer o relatório. Vistos Gold? Neste caso, o Governo é que vai fazer o relatório. Reforço do investimento para a Saúde Mental? Prometemos que pensamos nisso, é uma prioridade, portanto nada de decisões agora. Taxas moderadoras? Lá iremos, ainda não se sabe como. Programa de vida independente? Um relatório será. Reforço da oferta de habitação? Paciência, o relatório estava feito mas terá de ser menos do que o que foi prometido na campanha eleitoral, já era pouco, bem se sabe, mas a vida é como é.
Sobram algumas certezas, umas boas (tributação de alojamento local em áreas sobreutilizadas ou insistência no imposto sobre património imobiliário de luxo), outras péssimas (atualização de escalões do IRS com perda real). Se alguém não conhecesse este deve e haver, diria que o Orçamento ainda não sabe para onde quer ir. É o resultado da pressa e da atitude maioria-absoluta, quando, afinal, o Governo se apresenta mais frágil e mais dividido desde as eleições.»
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