«Somos de tal forma um país de virgens ofendidas que em poucas línguas a expressão é tão popular como entre nós. Talvez esta seja, aliás, a melhor forma de descrever as reações às revelações do Luanda Leaks. Não é que estas não sejam relevantes e ilustrativas, só que têm ajudado a expor uma tremenda hipocrisia.
Pormenores à parte (que tenderão a ser mais relevantes judicialmente em Angola do que por cá), no essencial, a história já era sobejamente conhecida. Bastava, na verdade, que, a título de exemplo, se tivesse prestado atenção a um pequeno livro publicado em 2014 (já lá vão, portanto, seis longos anos), por Jorge Costa, João Teixeira Lopes e Francisco Louçã. Em “Os Donos Angolanos de Portugal” fica exposta com clareza — e sem grandes interpretações subjetivas — a extensão e a teia de cumplicidades entre capital angolano e empresas portuguesas.
De forma circunstanciada, é demonstrado que há uma linha direta entre o processo de acumulação primitiva em Angola e as transformações recentes do capitalismo português. Não deixa, aliás, de existir uma certa ironia sinistra na forma como a elite angolana, ilustrando a sua formação marxista, resgatou o conceito a “O Capital”, de Marx, para legitimar a cleptocracia.
Se há uma justificação funcional para o roubo em Angola, há também uma convergência de interesses objetivos entre a nova elite angolana e o nosso depauperado capitalismo. Do lado de Angola, o nosso país oferece uma oportunidade para investir em sectores estratégicos, com pouca ou nenhuma regulação, permitindo a legitimação de negócios e escancarando a porta para os mercados europeus; do lado português, Angola assegura os fundos de que as empresas portuguesas necessitam para ultrapassar o défice crónico de capitais. Que ninguém, por isso, se comporte como virgem ofendida.
A metáfora dos donos disto tudo é, de facto, exata. À imagem do que aconteceu aquando da introdução do primeiro pesticida moderno, o DDT, o surto de investimento em Portugal com capitais angolanos foi eficiente no curto prazo, mas a longo prazo os efeitos serão muito prejudiciais para a nossa economia e para a própria ideia moral que o país faz de si próprio.
Para já, arranjam-se uns bodes expiatórios e uma tragédia absoluta. Mas a questão será sempre mais profunda. Depois de termos perdido a PT, o BES, a Cimpor, o país pode dar-se ao luxo de, desta feita, perder a Efacec? E, mais dramático, o que tudo isto nos diz sobre as nossas debilidades: os reguladores que não regularam, os auditores que nada viram, os empresários que se acocoraram no beija-mão, as sociedades de advogados que a tudo se prestaram e os políticos que foram complacentes na exigência moral.»
Pedro Adão e Silva
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