«Nos anos duros da crise, o dinheiro roubado ao povo angolano ajudou a tapar muitos buracos da nossa economia. Recebemos esse dinheiro, que entrava em empresas portuguesas e por isso na economia, entre o nojo e a gratidão. Todos os que diziam que isto não só era imoral como insustentável, porque se perderia entre os dedos das mãos mal as coisas mudassem, eram chamados irresponsáveis. Recebi mensagens de muitos emigrantes em Angola que me explicavam o mal que lhes fazia quando criticava o poder angolano, indispondo-o contra os portugueses. Respondia-lhes que compreendia a sua frágil situação mas um erro não deixava de ser um erro, uma aposta insustentável não passava a ser sustentável, só porque garantia emprego (cá e lá) num determinado momento. E é por isso que a política tem de ser mais do que a gestão quotidiana das coisas.
Sente-se o alívio ético. Subitamente, todos podem dizer que a mulher que canalizou tanto dinheiro de Luanda para Lisboa, enchendo os bolsos a tantos portugueses, é uma ladra. E quanto maior foi a dependência maior é o asco. E mais adjetivados são os ataques morais. É sempre assim. Compreende-se o alívio. Estamos a exorcizar a amoralidade que marca o comportamento das nações em crise.
Devemos, no entanto, ser moderados no contentamento. Por cá, está tudo na mesma em relação a Angola. Não foram todos os jornalistas que acompanham esta investigação um pouco por todo o mundo que finalmente apanharam Isabel dos Santos. Tiveram um papel central no tratamento e confirmação da informação. Mas ela chegou-lhes por via indireta. Já sabemos que a fonte é Rui Pinto, mas não sabemos muito mais do que isso. Nem sabemos em pormenor como Rui Ponto opera. É impossível ignorar que esta informação, toda concentrada numa figura, é libertada numa nova circunstância política: Isabel dos Santos deixou de ter a proteção política do regime angolano.
Estarão muitos empresários, bastantes políticos e até alguns jornalistas e comentadores moderadamente embaraçados com tudo isto. Uns falam, outros calam-se e esperam. Mas todos sabem que passará. O que não vemos nem veremos é alargar a crítica e a denúncia política a quem esteja demasiado próximo do atual círculo de poder de João Lourenço. Nas investigações até há algumas incursões a figuras muito gratas ao “novo” poder. Mas isso não se traduz nem se traduzirá num discurso político e empresarial, porque isso seria mudar o satus quo que determinou o papel de Isabel dos Santos na economia portuguesa: que é o regime de Luanda, e não a lei ou a ética, a determinar a legitimidade ou ilegitimidade do dinheiro angolano.
Nisto, e apenas nisto, Isabel dos Santos tem razão: ela é vítima de uma perseguição política. Isto não retira nenhuma legitimidade à “perseguição” mediática e à “perseguição” da Justiça. Toda a informação que recebemos demonstra de forma gritante a sua justeza. Apenas quer dizer que se está a atingir seletivamente um elemento que foi expulso do círculo do poder, porque ele pretende renovar parte da elite económica angolana para reforçar o seu próprio poder. E é por isso que o ataque a Isabel dos Santos, sendo justo, não corresponde a qualquer mudança na cultura de submissão do poder político e económico português. Pelo contrário, a escolha seletiva deste alvo, por parte das críticas que se fazem em Portugal, apenas a confirma. Denunciar os negócios de Manuel Vivente, que foi protegido por João Loureço, será o sinal do fim dessa submissão. Ou do fim do estatuto de intocável do ex-vice-Presidente.
Nada disto é uma crítica à denúncia e cerco que se está a fazer a alguém que construiu uma colossal fortuna à custa do roubo dos recursos que pertencem a todos os angolanos. Como alguém que, nos últimos 15 anos, escreveu e falou sobre Isabel dos Santos, celebro-o. Foi uma das principais beneficiárias de um regime que usou a gestão desse roubo para se perpetuar. É apenas um lembrete: nada mudou na relação de Portugal com Angola. Percebemos os recados: Isabel dos Santos já não conta, mas aborrecer outros, como Manuel Vicente, continua a ser “irritante”. Foi e continuará a ser compreendido pelo poder político e económico do país. Espero, e tenho algumas razões para o esperar escrevendo num jornal que nunca deixou de fazer o que tinha de fazer em relação ao poder instituindo em Angola, que não o seja pela comunicação social.»
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