26.1.20

O parto que o polícia afinal não fez e outras fábulas



«A 15 de janeiro, o Comando Metropolitano da PSP enviou para as redações um tocante comunicado: um agente tinha ajudado uma mulher a dar à luz "em plena rua". Sob o título "Polícia auxilia parto em plena rua de Lisboa", lia-se uma descrição bastante pormenorizada: "Deparou-se com um aglomerado de pessoas em volta de uma mulher deitada no chão e em trabalho de parto. Aquando da ligação à emergência médica (112), e uma vez que já era visível a cabeça do feto/criança, a operadora foi-lhe dando indicações médicas a fim de continuar com o auxílio à progenitora, até à chegada dos meios de socorro."

Como boa história que era, foi de imediato publicada em vários media, que, claro, a assumiram verdadeira: por que raio iria a PSP inventar tal coisa? Por que raio de facto, mas inventou. Quer a SIC quer o DN falaram com pessoas que estiveram presentes e todas negaram que o agente se tivesse sequer aproximado da mulher. O técnico do INEM que deu indicações para o parto foi taxativo: não foi com um homem que esteve a falar. E dá-se o caso de o bebé - uma menina, e prematura - ter nascido "ao contrário", ou seja, por "parto pélvico", pelo que aquela de "já era visível a cabeça" demonstra que o agente nem viu a expulsão da criança.

Confrontada pela SIC, a PSP disse "manter integralmente as informações veiculadas" admitindo, porém, não ter sido o polícia que realizou o parto. Não foi enviado qualquer desmentido do comunicado; o porta-voz da Direção Nacional, a quem perguntei porquê, disse achar que "não valia a pena". Quando lhe disse que realmente não havia porquê, já que o problema do comunicado era apenas ser falso, riu-se. A seguir, assegurou que não se tinham dado conta, ao escrever, que estavam a dar uma ideia errada do que tinha acontecido, e que tinham aprendido com o caso.

Gostava de acreditar, juro que gostava. Mas tenho umas décadas de comunicados da PSP e da GNR na memória, mais ene exemplos de autos de notícia totalmente martelados - do género do subscrito pelo subcomissário Filipe Silva, que em 2015, em Guimarães, filmado em direto a agredir, por aquilo que parece razão absolutamente nenhuma, um adepto do Benfica e respetivo pai à frente dos respetivos filhos e netos, os acusava de o terem cuspido, rasgado o uniforme e agredido - e não vejo a PSP e a GNR mudar de modus operandi. E o modus operandi é o de "alindar" os acontecimentos, de modo que pareça sempre que não há nada que se possa apontar aos agentes envolvidos, aliás pelo contrário: são sempre verdadeiros heróis, na fila para receber um louvor ou mesmo uma comenda (vá lá que o Presidente da República não foi a correr abraçar o polícia que "fez o parto em plena rua").

É aliás normal que assim seja, já que, explicou-me o porta-voz da PSP, os comunicados são baseados nos autos de notícia elaborados pelos agentes. E qual o agente que vai escrever no auto de notícia "dei uma carga de porrada completamente sem razão porque me passei da cabeça", ou "disparei três tiros na direção do carro porque achei uma ideia boa, ia lá imaginar que balas matam"?


Nos autos de notícia, os agentes usam sempre "a força muscular estritamente necessária", foram sempre antes agredidos ou empurrados ou insultados ou cuspidos ou qualquer outra coisa do género, nunca insultaram, nunca usaram palavrões, nunca trataram por tu, nunca exigiram identificação sem nos termos da lei estarem autorizados a fazê-lo, nunca revistaram sem o poderem fazer, e nunca puxaram da arma fora dos "condicionalismos legais". E se disparam e atingem alguém é sempre porque "houve tentativa de atropelamento", ou "o suspeito pareceu estar armado", ou "apontei para os pneus para imobilizar a viatura mas houve um ressalto e a bala mudou de direção", ou "empunhei a arma que julgava estar na posição de segurança e esta disparou-se".

Se eu sei isto, é claro que a hierarquia da PSP e da GNR estão carecas de o saber. Pelo que me é totalmente incompreensível que insistam em comunicar, com o peso, a responsabilidade e a obrigação de verdade que a instituição policial tem, versões de parte como se fossem factos verificados. Uma prática que se torna ainda mais ridícula e desprestigiante quando o próprio comunicado anuncia a abertura de um inquérito: que credibilidade esperam que se confira a um inquérito que parte de uma antecipada proclamação pela instituição de que tudo correu de acordo com as normas?

Percebo que, como o porta-voz da PSP me explicou, a instituição considere que deve fazer uma comunicação sobre as situações, por considerar ser esse o seu dever. Simplesmente esse dever de transparência e de esclarecimento deve ser isso mesmo: transparência e esclarecimento. E se querem comunicar - o que faz sentido - a versão do agente ou dos agentes envolvidos, devem tornar claro que é isso mesmo, uma versão. É muito fácil: separam aquilo que a instituição pode afirmar com segurança, por estar comprovado, e aquilo que é a narrativa dos agentes envolvidos: aí deve dizer-se "de acordo com o agente ou agentes".

Isto deverá ocorrer sempre, mas é particularmente importante em situações em que está em dúvida a legalidade e a legitimidade das ações policiais.

Tomando como exemplo o ocorrido no domingo à noite na Amadora, e o comunicado que foi sobre ele exarado na noite do dia seguinte: deveria ter o máximo de factos comprovados - a hora a que foi dado o alerta para o 112 ou a que o agente envolvido chamou reforços, mas também se este estava ou não em serviço, a que esquadra pertence, quantos agentes e carros-patrulha compareceram no local, quantas testemunhas foram identificadas, para que esquadra foi levada a mulher e quantos agentes seguiam com ela no carro, a que horas foi chamada a ambulância e por quem e quanto tempo levou esta a chegar. Isto é informação básica. E muita desta informação básica não está no comunicado.

O que lá encontramos são justificações para o uso da força, de resto confusas e duvidosas: empurrar ou falar de forma agressiva com um agente - é o que está no comunicado - justifica uma chave ao pescoço e uma imobilização brutal, como a que vemos nas imagens? É isso a "força estritamente necessária"? A chave ao pescoço é um procedimento muitíssimo perigoso, que pode causar lesões graves ou mesmo a morte. Se havia, como se diz no comunicado, pessoas que não a mulher a pontapear e a empurrar o agente, porque é que é a ela que decidiu deter e não a essas pessoas? E por que não vemos essas pessoas no vídeo, quando está empoleirado na mulher e a puxar-lhe o cabelo? Como se coaduna aquilo que vemos nas imagens com a certificação, no comunicado, de que "só com a chegada de reforço policial foi possível conter as pessoas no local"? Foi preciso "conter" mas não houve detenções de quem alegadamente agrediu o agente?

"A instituição tem de ter minimamente confiança nos seus funcionários", pontifica o porta-voz da PSP, perante as minhas objeções a comunicados que assumem as respetivas versões. Parece até uma frase sensata, se não repararmos que implica o inverso: um princípio de desconfiança em relação aos outros cidadãos. E o absoluto contrário daquilo que é função da polícia: esta existe para assegurar a legalidade, a paz social e a descoberta da verdade, não para preservar a sua imagem e o que considera (mal) ser o seu prestígio e "autoridade".

Enquanto a PSP e a GNR insistirem em fazer comunicados de fação, merecem por eles a mesma credibilidade que qualquer press release ou folheto de propaganda: zero. Já era altura de alguém reparar nesta vergonha.»

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