«O OE é o Borda d’Água do Governo. Nele apresentam-se prognósticos para o ano, previsões para as colheitas de impostos e informações sobre as mezinhas que vão ser utilizadas para contentar os portugueses e, sobretudo, os partidos da maioria. O OE transforma-se, assim, numa muito adocicada mousse de chocolate. Mas, lamentavelmente, e ao contrário do Borda d’Água, o OE não traz provérbios, conselhos astrológicos ou dados credíveis sobre as marés e as fases da Lua. O que o torna mais pobre. Talvez por isso o texto do OE é acusado de ser a melhor obra de ficção literária que, a cada ano, se publica em Portugal. Todos fingem lê-lo. Mas poucos, por certo, conseguem ler um romance tão desinteressante que a cada ano o sr. Mário Centeno entrega ao sr. Ferro Rodrigues. No entanto, ambos surgem saltitantes e sorridentes, com ar de quem acabou de receber o derradeiro “best-seller” do sr. José Rodrigues dos Santos, que conhecem do Telejornal, e que está em pulgas para o folhear.
Não é caso para tanto. A primeira frase do OE de 2020, numa prosa assinada pelo sr. Centeno, é a seguinte: “O Orçamento do Estado (OE) para 2020 é o primeiro exercício orçamental da responsabilidade do XXII Governo Constitucional.” Palavras de sábio. Não é o último, nem o penúltimo. Mas convém reforçar a ideia, não vá os portugueses esquecerem a coisa. Mas, como o sr. Centeno citou Fernando Pessoa na sua aula diante do Parlamento, pode ser que o OE esteja a caminho de se tornar poesia minimal repetitiva. Ou de o sr. Centeno se tornar um heterónino do poeta. Ou mesmo um heterónimo de ministro.
Seja como for, a mousse de chocolate está pronta a ser distribuída na especialidade. Terminada, pelo menos como imagem redentora, a “geringonça”, resta-nos a memória. Escutando um velho tema da Banda do Casaco, chamado exactamente “Geringonça”, de 1977, alguns percebem porquê: “Estávamos nós a contar ai as patas às ovelhas/A ver se faltava alguma/Quando aquela geringonça ai desceu lá do alto/E poisou entre molhos de caruma/Ai aquilo era coisa ai do outro mundo era”. Era, mas acabou, como se fosse o ET do filme do sr. Spielberg.
Vivem-se tempos de mudança de estação, como explicaria o Borda d’Água. Épocas de semear outras culturas. Neste contexto de mudança é estimulante ler o romance de John Williams, “Augusto”, de 1973, e editado no final do ano passado em Portugal. De forma ficcionada seguimos a vida do jovem Octavius nos tempos conturbados que se seguiram ao assassinato de Júlio César. Até que se tornou César Augusto, o imperador. Durante mais de quatro décadas estabeleceu a nova ordem. Mortos António e Cleópatra, Augusto pode espalhar a sua paz por todo o império.
Após ter visto Júlio César ser assassinado, tinha a certeza que a aparência é sempre mais importante do que a realidade. E assim foi imperador sem parecê-lo. Isso evitou que fosse assassinado. Percebeu as maquinações do poder (que não se exercitam só a nível político). Foi mestre na arte da manipulação da informação, ajudado por Gaio Mecenas (o “mecenato” nasceu dele), milionário confidente de Augusto, que atraiu muitos poetas ao círculo do poder, em particular Virgílio. Deu-lhes estabilidade financeira, tal como a Horácio. Estes criaram um mito. Tácito falou depois da podridão que se instalou com o imperador: “Augusto conquistou os soldados com presentes, a populaça com milho barato e todos os homens com as delícias do repouso, e assim se engrandeceu por etapas, enquanto concentrava em si mesmo as funções do Senado, dos magistrados e das leis.” Ganho o poder, vencida a luta das ideias, proscritos os críticos, Augusto desenhou a sua paz.
Hoje, mais comedidos, os governantes julgam que a paz dos povos se conquista com Orçamentos com superávite. E com discursos áridos. O sr. Centeno poderia sonhar ser o César Augusto destes tempos. Não o será. O Borda d’Água explica tudo: as estações sucedem-se. Há a época das sementeiras. A do crescimento. A das colheitas. E a da chuva e do vento, que prepara o renascimento. Contra este ciclo, nem César Augusto venceu.»
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